DIÁRIO EM GRAMADO

Retratos de um país e suas periferias colorem a tela de cinema em Gramado

Nó e Papagaios são os primeiros filmes da competição de longas metragens da 53° edição do festival e retratam pessoas comuns que lutam por um lugar ao sol

Nó, filme de Laís Melo que representa o Paraná e inaugurou a competição de longas metragens de ficção no Festival de Gramado de 2025
Nó, filme de Laís Melo que representa o Paraná e inaugurou a competição de longas metragens de ficção no Festival de Gramado de 2025

Glória, a mãe operária, cansada mas repleta de afeto para dar para as três filhas, mesmo vivendo com muito pouco e ouvindo reclamações delas sobre a falta de conforto e de acesso, é o vórtice central de Nó, filme de Laís Melo que representa o Paraná e inaugurou a competição de longas metragens de ficção no Festival de Gramado de 2025.Vivida por Saravy, atriz premiada no teatro e no cinema, presente em obras como A Felicidade das Coisas (de Thais Fujinaga) a heroína é a força do filme naturalista, que talvez careça de maior apuro técnico para realmente possibilitar uma conexão com o público já que o excesso de planos médios, tanto na casa da família central quanto na fábrica de salgadinhos onde Glória trabalha e conta com o companheirismo da colega vivida por Sali Cimi, transpira uma falta de inspiração, além da fotografia muitas vezes pálida e um pouco chapada, sem grandes contornos de luz.

Voltando a história, Nó trata dos problemas de Glória, que a vão consumindo por dentro, quando um calombo surge em seu corpo e vai aumentando de diâmetro à medida em que ela falha em resolver o conflito com o pai das três filhas – uma delas, a própria filha de Saravy na vida real, Antonia – e em lidar de forma transparente com o processo seletivo do qual participa na fábrica para ocupar um cargo de supervisão. As soluções óbvias de roteiro, que talvez reflitam uma certa falta de ambição artística, enfraquecem o filme em seu conjunto, mas a composição que Saravy faz, mistura angústia e ternura, empresta um valor a Nó e a coloca, mesmo no começo ainda da competição, em condições de lutar pelo kikito de melhor atriz.

E por falar em atuação, Gero Camilo e Ruan Aguiar chegam como fortes candidatos nas categorias de melhor ator e melhor ator coadjuvante por Papagaios, esse sim, um filme robusto, instigante e que fica na cabeça por um tempo considerável. Desenhado como um drama suburbano que também costura aspectos de outros gêneros narrativos como o suspense e o policial, Papagaios – que é escrito e dirigido por outro estreante, dessa vez no gênero ficcional, o documentarista Douglas Soares – diverte e choca ao narrar a histórias dos “papagaios de pirata”, pessoas que têm como ofício aparecer no noticiário durante algum acontecimento público.

Gero Camilo e Ruan Aguiar chegam como fortes candidatos nas categorias de melhor ator e melhor ator coadjuvante por Papagaios, esse sim, um filme robusto, instigante e que fica na cabeça por um tempo considerável
Gero Camilo e Ruan Aguiar chegam como fortes candidatos nas categorias de melhor ator e melhor ator coadjuvante por Papagaios, esse sim, um filme robusto, instigante e que fica na cabeça por um tempo considerável| Foto oficial: Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto

Camilo vive aquele que aparentemente, seria o personagem central, Tunico, um notório ‘papagaio’ que tem como bico a corretagem no bairro de Curicica, localizado ao lado da Rede Globo, na cidade do Rio de Janeiro. Mas na realidade, Tunico logo divide o protagonismo com Beto, aparentemente um personagem secundário, que vive escondido e pouco fala mas que vai, nas palavras de seu intérprete, Ruan Aguiar, consumindo e tomando conta da vida daquele que tem como ídolo. “Beto é a personificação do desejo de quem assiste e o que eu tentei fazer na minha composição foi torná-lo dinâmico mesmo sendo alguém silencioso, quieto mas com traços de psicopatia”, assinalou o ator na coletiva de imprensa do filme.

Uma vida dedicada aos filmes brasileiros

Outro destaque importante no terceiro dia de programação nesta que é a 53° edição do festival foi a homenagem para a produtora, diretora, roteirista, montadora e dona da Morena Filmes, Mariza Leão por cinco décadas de trabalho dedicado ao cinema por meio de produções como Meu Nome Não é Johnny, Meu Passado Me Condena, De Pernas Para o Ar, Minha Irmã e Eu, Um Tio Quase Perfeito, Zuzu Angel, Lamarca, Guerra de Canudos, Romance da Empregada, Doida Demais, Lili a Estrela do Crime, Nunca Fomos Tão Felizes e Leila Para Sempre Diniz. Casada com o cineasta Sérgio Rezende, com quem fundou a produtora em 1975, Mariza é uma das mulheres mais importantes do cinema brasileiro e tem sido muito vocal na luta pela regulação do VOD no país.

Em conversa mediada pela jornalista e critica de cinema Flavia Guerra na manhã da segunda, 18, ela relembrou sua trajetória permeada de sucessos nos anos 80, 90 e 2000, como a parceria criativa com a atriz, roteirista e produtora Ingrid Guimarães. Mariza Leão realizou em 2005, junto com o também cineasta carioca Marcelo Laffitte o documentário Regatão, o Shopping da Selva, que teve como ponto de partida o argumento desenvolvido por Mariza sobre o avô mascate e a pesquisa feita acerca dos ‘mascates dos rios’ que comercializam de tudo na região da floresta onde vivem os ribeirinhos.

Regatão foi filmado entre o Pará, o Amapá e o Amazonas; vinte anos depois, Mariza Leão se prepara para lançar outro filme rodado na Amazônia: Perrengue Fashion, uma comédia com Ingrid Guimarães que estreia nos cinemas de todo o Brasil em 9 de outubro de 2025.

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Diretora de arte com uma larga trajetória, Laís Melo estreia na direção de longas-metragens ficcionais com Nó, que parte de um roteiro seu e de Saravy

A serra gaúcha se torna a cidade do cinema brasileiro a partir da segunda quinzena do mês de agosto em 2025; Gramado inaugura mais uma edição do seu tradicional festival de cinema recebendo celebridades da sétima arte, críticos de cinema e cinéfilos para uma celebração que dura onze dias e culmina com a distribuição dos kikitos dourados. Mas na abertura, já houve a entrega de um prêmio, o Kikito de Cristal, para o ator Rodrigo Santoro por sua contribuição no cinema mundial e projeção que trouxe para o Brasil através de papéis em produções de Hollywood e outras como 300, Simplesmente Amor, Leonera, Westworld e Che.

Santoro está no elenco de O Último Azul, do diretor pernambucano Gabriel Mascaro. Filmado na Amazônia, na região de Novo Airão e Manacapuru, no Amazonas, a produção é protagonizada por Denise Weinberg e conta ainda com os atores amazonenses Adanilo, Isabela Catão e Rosa Malagueta. Premiado no festival de Berlim como o prêmio do júri, o filme apresenta uma trama distopica onde pessoas idosas são encarceradas pelo estado e isoladas em colônias, a partir do momento que se entende que elas se tornam um fardo para suas famílias. Tereza é uma mulher de 77 anos que se rebela e tenta escapar, voando pelos rios, em busca do controle sobre a própria vida.

O filme causou burburinho em Gramado, a começar pelo fato que o clássico tapete vermelho foi substituído por um tapete azul, por onde o elenco e equipe de O Último Azul marcharam até chegar ao Palácio dos Festivais. Santoro, após receber a homenagem no palco, com seu Kikito de Cristal em mãos, não escondeu a emoção e disse ter sido formado pelo cinema brasileiro independente; ele, que começou a carreira no cinema no Bicho de Sete Cabeças, de Lais Bodanzky, lançado 25 anos atrás.

O ator acrescentou que O Último Azul é um filme repleto de esperança e que seu personagem, Cadu, um barqueiro solitário que vive o luto de um amor perdido, num símbolo da liberdade que é o barco, lhe possibilitou a experiência única de filmar na Amazônia: “eu fiz um mergulho no lugar, do qual muito se fala mas pouco se conhece, passei semanas me preparando, convivendo com ribeirinhos como o barqueiro Seu João, que me ensinou a navegar pelos rios e Igarapés. Não tenho muito a dizer além de que é preciso experimentar a Amazônia para compreender. Depois de encerradas as filmagens, encontrei a minha família e de barco, fomos subindo o rio Amazonas por quatro semanas e conhecendo vários lugares, vivendo a experiência.”

O começo da competição 

Após a exibição especial, fora de competição, de O Último Azul – que estreia nos cinemas de todo o país dia 28 de agosto – o Festival de Gramado deu início, no sábado, a competição oficial de longas metragens com a exibição de Nó, filme de estreia de Laís Melo. A produção paranaense é protagonizada por Saravy (de A Felicidade das Coisas) que também assina o roteiro junto com Melo, sobre uma mãe operária que cria as três filhas na precariedade e passa por dilemas pessoais e profissionais quando o ex-marido resolve entrar na justiça para obter a guarda total das meninas.

A recepção ao filme, com uma equipe quase que totalmente feminina, foi morna, mas as turbinas esquentaram e palmas mais efusivas foram direcionadas a Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente, episódio piloto da série da HBO que foi exibida de forma especial em Gramado; dirigida por Marcelo Gomes e protagonizada por Johnny Massaro, Bruna Linzmeyer e Ícaro Silva, trata da epidemia de AIDS e como um grupo de jovens se arriscou para trazer dos EUA o tratamento de AZT para os pacientes brasileiros. A produtora Mariza Leão, da Morena Filmes, realiza a obra e é também uma das homenageadas do festival pela sua contribuição de décadas para o desenvolvimento do audiovisual no Brasil. 

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Texto de Lorenna Montenegro