Belém e Pará - Açaí, tucupi, maniçoba e vários pratos da culinária paraense formam a cultura alimentar amazônica. Proibir um desses produtos nos espaços oficiais durante a realização da COP-30, em Belém, este ano, reflete uma contradição dos princípios da própria Carta das Nações Unidas, que tem como uma de suas pautas centrais a valorização da biodiversidade amazônica.
Inicialmente, esses produtos estavam vetados em um edital publicado no último dia 15 pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), por supostos riscos à segurança alimentar, como a possibilidade de contaminação por Trypanosoma cruzi no caso do açaí in natura, e a presença de toxinas naturais no tucupi e na maniçoba, caso não fossem devidamente preparados e pasteurizados.
A restrição seria apenas para o edital dos espaços oficiais, que abrange um total de 87 estabelecimentos divididos em seis categorias: VIP internacional; VIP brasileira/regional; italiana; vegana/vegetariana, pan-americana; brasileira e regional. A atualização do edital, conforme informou o Ministério do Turismo, garante que sabores típicos do Pará estejam presentes durante a Conferência do Clima na Amazônia. Apesar da revogação do edital, seguem proibidos outros itens como maionese, ostras cruas, carnes mal passadas e sucos de frutas naturais.
A cozinheira e boieira Eliana Ferreira trabalha há 38 anos com comida regional. Sua história começou em Ponta de Pedras, onde aprendeu com sua mãe e outros cozinheiros a preparar os alimentos, e se desenvolveu no Ver-o-Peso. Na maior feira aberta da América Latina, ela somou seu conhecimento a noções de empreendedorismo com o chef paraense Paulo Martins e se especializou em pratos como maniçoba, vatapá, tacacá e açaí, que são essenciais para a cultura local e atraem turistas.
“A comida regional foi a que eu mais me identifiquei para trabalhar por ser da nossa região e termos todos os ingredientes aqui. Trabalho muito com maniçoba, vatapá, tacacá e o açaí não pode faltar na mesa do paraense. O turista, quando chega no Ver-o-Peso, quer experimentar o filhote com o açaí”, comenta a cozinheira.
Preocupada com a preparação, Eliana cozinha a maniçoba por 15 a 20 dias para garantir a cor ideal, transmitindo o conhecimento culinário que vem de geração em geração, desde sua avó até sua filha. Ela está otimista em relação à venda de seus pratos durante a COP-30. “Mandei cozinhar 100 quilos de maniçoba para me programar para esse período, porque eu vendo tanto no Ver-o-Peso quanto no restaurante da Antônio Barreto e na Praça Brasil. Eu não posso faltar com a maniva cozida. Já fica tudo pronto porque quando está terminando, já tem outra leva para distribuir nos boxes do Ver-o-Peso. Estou muito animada cozinhando a minha boa maniva para vender na COP30”.
O médico David Bechara, 70, considera que a comida paraense é singular e o mundo precisa conhecê-la. “Nós curtimos tanto isso que quando a gente viaja, sente uma saudade incrível de voltar por causa das nossas comidas. Para nós foi muito estranho o que aconteceu, de repente, uma notícia de que essas comidas não poderiam ser servidas durante a COP. É como se não pudesse fazer mal para as pessoas de fora, mas pode fazer para nós. Quer dizer, não tem o menor sentido. Ou como se a nossa imunidade fosse maior. Então, nós acreditamos que a nossa comida é extremamente saudável e o mundo todo precisa conhecer”.
Para o renomado chef paraense Thiago Castanho, que é curador do Festival Amazônico de Gastronomia que está acontecendo em Belém, a medida soou como um caso de xenofobia. “Essa questão da xenofobia existe desde quando eu comecei a trabalhar, há mais de 25 anos. Imagina se um evento desse acontece na Itália e proíbem de fazer massa ou molho de tomate? Quando você faz uma comparação assim parece algo ridículo porque as pessoas ainda olham para os nossos ingredientes como algo muito exótico, inclusive o brasileiro. Ontem foi revogado o edital devido à pressão do público. De certa forma, é uma vitória, mas ainda vai acontecer muita briga ao longo dos anos ainda”.
O chef, que utiliza insumos amazônicos em sua cozinha, defende a simplicidade de comidas regionais, que vão além de restaurantes com estrelas. “Acho que a gente tem que entender o valor da nossa região para o resto mundo, entender o que é a nossa potência, que às vezes pode ser uma comida simples. É preciso valorizar os processos artesanais de produção e não olhar isso como falta de tecnologia, e sim como algo para nos enaltecer. Isso que os japoneses fizeram e a Europa faz com os seus produtos como a massa, por exemplo”, considera Thiago Castanho.
Experimentar uma maniçoba, um açaí ou um tacacá significa viver a própria identidade. É o que reflete a professora aposentada Mariana Paiva, 59. “A comida é a minha cultura, a valorização do que nós somos e do que nós temos. Essa é a nossa cara, esse é o nosso Pará. Esconder isso ou restringir isso, seria tirar parte da nossa identidade de um processo mundial. Nós somos essas pessoas que gostam desses alimentos e que se alegram com isso. A maioria de nós vive disso também, da maniçoba, do vatapá. Onde a gente passa, nas esquinas que a gente vive tem gente consumindo esses pratos. É nossa identidade, que está na nossa música, na nossa pele, na nossa comida e no nosso dia a dia”, diz ela orgulhosa.
Pressão de entidades regionais foi decisiva
A decisão da OEI veio após a forte reação de 19 entidades paraenses, entre elas a Federação das Indústrias do Pará (Fiepa), Abrasel, ACP e Aspas, que divulgaram nota de repúdio à medida inicial. O ministro do Turismo, Celso Sabino, também se posicionou contra a decisão e garantiu que os produtos seriam autorizados pela organização do evento.
Na carta conjunta, as instituições classificaram a proibição como um “ato de desconhecimento e preconceito cultural” contra ingredientes que são símbolos da identidade alimentar amazônica, como o açaí, o tucupi e a maniçoba. Após a repercussão causada pelo edital, a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) revogou a proibição desses produtos nas áreas oficiais da COP30. A decisão consta em documento oficial assinado por Luiz José da Silva, secretário da Comissão de Avaliação da OEI.
A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) também se manifestou. Em nota, mencionou a errata do edital de licitação que trata da contratação de empresas para operação de restaurantes da COP30. Segundo o texto, “a culinária paraense será incorporada e o detalhamento da oferta de alimentos no evento será realizado após a seleção dos fornecedores”.
O texto ressalta que o objetivo do edital publicado busca valorizar: empreendimentos coletivos, tais como cooperativas, associações, redes solidárias e grupos produtivos locais; grupos historicamente vinculados à produção de alimentos sustentáveis e à sociobiodiversidade, como povos indígenas, comunidades quilombolas, mulheres rurais, juventudes do campo e demais povos e comunidades tradicionais; e agricultores familiares e a economia local, garantindo que ao menos 30% do valor total dos insumos adquiridos sejam provenientes da agricultura familiar, com incentivo a superação desse percentual.
Ainda segundo a nota, “a definição do cardápio da COP30 é de responsabilidade da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), assim como possíveis orientações sobre produtos alimentícios, e atende a critérios da Vigilância Sanitária nacional e subnacional. Os cardápios apresentados poderão sofrer ajustes para atender aos critérios do edital, como a diversidade de alimentos e a segurança dos participantes da conferência. Qualquer recomendação neste sentido é exclusiva para espaços da conferência, não abrangendo outros locais do município de Belém ou do estado do Pará”.
A SECOP e a OEI buscam contribuir para a elaboração dessas diretrizes de abastecimento do evento. Com isso, de acordo com a nota da Secom, será realizada uma audiência pública, marcada para a próxima terça-feira, 19 de agosto, que tem o objetivo de ouvir candidatos à operação de alimentação da COP.