O livro “Às vezes o monstro é uma mulher” reúne a primeira coleção de poemas que Camille Castelo Branco selecionou para publicação (Editora Folheando, 2022). Uma première que, em seu sopro vital, revela habilidades bem experimentadas no meio que parece ser o seu mais confortável e habitual campo de exercício da paixão e da busca por conhecimento de si e do mundo: a palavra. Com bom gosto, apurado senso formal, mas livre de formalismos, Camille desenha seus versos em movimentos seguros e breves como a garantir a expressão de cada parte e a cada palavra. Cada palavra importa. E, frequentemente, fruto da criação estética, há uma verdade simples que comunica, mas que está ali como um segredo. É tarefa do leitor descobri-la.
Em nosso idioma, descobrir pode ser sinônimo de imaginar e inventar. Segundo a doutrina platônica, inventar e descobrir é o mesmo que recordar, comenta Jorge Luis Borges em célebre conferência sobre poesia. Um dos efeitos bem reconhecidos da poesia é o de que temos (nós, leitores) a sensação de estar a recordar de algo que já sabíamos previamente. Ou mesmo, mais otimistamente, de que poderíamos ter escrito aquilo. Aqui, nesse encontro com o leitor, a poeta oferece um laço, como um sentimento de continuidade, de ativação de memórias comuns.
Em Às vezes o monstro é uma mulher, temos a ativa, potente e inconfundível voz de uma poeta às voltas com a sua própria compreensão do mundo, maturando as impressões diárias e memórias formadoras da experiência poética. A inteligência penetrante e espirituosa de sua capacidade de expressar o que muitas vezes permanece indizível constitui um atrativo irresistível para o leitor. A poeta, ao transmitir essa experiência, a torna conhecimento de ordem afetiva — expresso por meio de imagens, ritmos e sonoridades. Impossível buscar analisar esse processo em termos lógicos. Como ensina o ensaísta Benedito Nunes, “a poesia é irredutível, dotada de auto-suficiência”.
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Camille Castelo Branco não se coloca só, ao contrário, nos oferece com galhardia a leitura que faz de outros poetas — “As palavras sempre encostam em mim antes dos dedos” — e demonstra agilidade em pensar seus versos ao sabor desses entrelaçamentos de ideias e ritmos, como no divertido poema “A bula de um frasco azul”: “Wislawa recomenda morrer apenas o estritamente necessário […] Wislawa não advertiu que você poderia ficar viciada”.
O livro está estruturado em três atos:
Primeiro ato — “Cacos de vidro”, com dez poemas, nos apresenta o desenho do corpo e a sua cicatriz; o corpo é o campo aberto da experiencia poética;
Segundo ato — “Jogos de Ícaro — estudos de aproximação”, com doze poemas, é uma espécie de via crucis sem as duas últimas estações; não haverá consolo nem ressurreição;
Terceiro ato — “A voz do Monstro”, com oito poemas, inicia com “Ritos de sobrevivência”, um pequeno manifesto de possível ou potencial insurreição iminente: “Não há metal imobilizando meus braços, minhas pernas e minha boca. Há a mim mesma. Segurando as rédeas com força”.
O poema que dá nome ao livro, Às vezes o monstro é uma mulher, encerra o terceiro ato. Ele remete à idealização do outro, ao desajuste e também ao que é incontornável em uma relação, e que, em algum momento, será revelado ou exposto. É nesse momento que o monstro que habita o livro, com face, corpo e voz para cantar nos três atos, salta da página em nossa direção e nos convoca a companhia, incitando o mistério que pudermos sustentar.
O monstro, por princípio, é capaz de manifestar ou revelar porque tem conexão (ou está conectado) com o sobrenatural. A etimologia da palavra, originada do latim monstrum, remete ao ser que enuncia, o que dá a conhecer ou demonstra por desígnios divinos — e que por isso está fora da ordem regular. É coisa prodigiosa, espantosa ou assombrosa. O monstro, ainda em seu sentido próprio, indica, denuncia, acusa, adverte e aconselha. Mesmo recluso, “ele vai mostrar os dentes” e “ele vai bater o corpo de encontro à cela, furioso”, pois “um monstro não nega suas inclinações”. O monstro é o que é capaz de dizer.
Confira um dos poemas de Camille Castelo Branco:
Visita
Às vezes
Com olhos arregalados
Cabelos negros
E ar de desamparo
Surjo eu mesma
Aos quatro anos
Tocando as paredes da parte interior
Do meu corpo adulto
É uma criança desconsolada
Que espera pela mãe que não chega
Que pede um colo que não vem
Que não sabendo falar direito como sofre
Me arranca também as palavras
É um trabalho de espera
Até ouvir essa voz
Enquanto me sento
Com o mundo esmagando minha traqueia
Com o tempo convertido em passado
Não existe ninguém além de mim
Que console essa menina que fui
E em alguns dias não consigo
Então só choro ao lado dela
Só deito ao lado dela
Todo dia tenho medo de quando ela volta
Os adultos não deveriam ter medo das crianças
A lógica diz o contrário
Todo dia espero que
No momento em que ela decidir falar comigo
Diga
“Eu gosto de quem você virou
Você poderia ter me salvado
Se quando eu era assim
Você já existisse”
Sobre a poeta
Camille Castelo Branco nasceu em 1994 em Belém do Pará. Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), há mais de dez anos desenvolve pesquisas sobre feminismos, violência, corporalidades políticas e mobilização social na Amazônia.
Resenha de Andréa Sanjad, editora e criadora do selo GuardaLetras. É uma das editoras do site beneditonunes.org. Reside e trabalha em Belém do Pará (Brasil). Publicada em agosto de 2022 na Revista Caliban
Serviço:
O livro “Às vezes o monstro é uma mulher” (editora Folheando), de Camille Castelo Branco, será lançado na programação do Círculo Onanístico de Leitura, no dia 7 setembro de 2022, no Núcleo de Conexões Na Figueredo, em Belém.