Entretenimento

Obra de Mestre Vieira se desdobra em projetos inéditos

Documentário sobre o músico deve chegar ao público este ano, marco dos 90 anos de nascimento e seis anos de morte de Vieira. FOTO: RENATO REIS/DIVULGAÇÃO
Documentário sobre o músico deve chegar ao público este ano, marco dos 90 anos de nascimento e seis anos de morte de Vieira. FOTO: RENATO REIS/DIVULGAÇÃO

Texto: Aline Rodrigues

Foi exatamente numa sexta-feira de Carnaval, no dia 2 de fevereiro de 2018, que Mestre Vieira partiu desse plano e deixou saudades. Mas o luto deu lugar ao trabalho de amigos, familiares e profissionais que acompanharam o mestre para salvaguardar a obra deixada pelo artista, criador da guitarrada, gênero musical que a princípio ele chamou de lambada.

“Este ano, em 29 de outubro, ele faria 90 anos, se estivesse vivo, e espero que nesse dia possamos lançar, em Barcarena, o filme sobre sua trajetória, o ‘Coisa Maravilha, a Invenção da Guitarrada’, cuja etapa de finalização conseguimos aprovar no edital da Lei Paulo Gustavo, lançado pelo Governo do Estado”, diz a jornalista Luciana Medeiros, produtora e diretora do filme.

O longa começou a ser feito pela jornalista ainda em 2011, quando realizava pesquisa para outro projeto, o “Mestre Vieira – 50 Anos de Guitarrada”, que resultou num DVD gravado ao vivo no Theatro da Paz.

“Naquela época filmamos em Barcarena e em Belém. São mais de dez anos desde o início das primeiras filmagens, mas neste meio tempo segui produzindo o Mestre Vieira, com objetivo de registrá-lo e documentá-lo, além de apoiá-lo em todos os sentidos e principalmente a partir do momento em que ele adoeceu, já em 2016, até sua partida”, contou Luciana.

Já em 2019, Luciana realizou nova pesquisa para o projeto “Inventário Mestre Vieira”, que resultou num livro impresso com partituras, fotos e textos bilíngues sobre sua história fonográfica, lançado em 2022. O projeto teve apoio do Rumos Itaú Cultural e possibilitou à jornalista chegar a Fortaleza, no Ceará, para gravar entrevistas com pessoas que viveram a época dos shows que o artista fez por lá.

“Vieira e Seu Conjunto – pois ele ainda não era o Mestre Vieira – fizeram um enorme sucesso no Nordeste no início dos anos 1980, e na capital cearense pude compreender melhor o quanto ele influenciou toda aquela febre da lambada que se espalhou pelo país e fora daqui. Foi já no início dos anos 1990 que o Mestre saiu da cena midiática, tomada por uma nova cena com reis da lambada surgindo em todo o Brasil, um movimento que seguiu um rumo próprio”, disse Luciana.

Mestre Vieira durante filmagens do documentário “Coisa Maravilha, a Invenção da Guitarrada”. FOTO: RENATO REIS/DIVULGAÇÃO

No filme “Coisa Maravilha, a Invenção da Guitarrada”, Luciana quer abordar a trajetória musical do Mestre, trazendo, inclusive, a discussão de quem criou a lambada. Dúvida tirada pelo músico e pesquisador Bruno Rabelo: “A gente costuma dizer que são três pais: Pinduca, Mestre Vieira e Haroldo Caraciolo”.

Ainda de acordo com ele, Mestre Vieira deu contribuições decisivas para a música brasileira e da Amazônia, começando sua trajetória nos anos 1970, como guitarrista, compositor, e integrando um seleto grupo, pioneiríssimo, formado por nomes como Fafá de Belém, Pinduca, Verequete, Cupijó e Mestre Lucindo, que registraram seus primeiros LPs por gravadoras nacionais naquela década. Vieira era contratado da Continental.

“E por que ele foi contratado? Exatamente por conta do destaque que começou a ter no início dos anos 1970 em Barcarena. Isso chamou a atenção de músicos, do público e dos ‘olheiros’ das gravadoras daquele tempo. Mestre Vieira, então, além de ser um pioneiro, também vai ser a figura que inaugura um gênero, uma maneira de se tocar guitarra elétrica na Amazônia e que a gente chama hoje de guitarrada, mas que no tempo que ele começou a gravar os seus discos, ainda era tudo lambada”.

Atualmente, a guitarrada é chamada também de lambada instrumental para guitarra. “Ele inicia uma trajetória que não havia para a guitarra elétrica, uma música amazônica feita para esse instrumento. Grava seu primeiro disco em 1978, o ‘Lambadas das Quebradas – volume 1’, inteiro de temas solados com ele na guitarra, em que ele mistura choro, mambo, o bolero, um pouco de carimbó também, Jovem Guarda, tudo isso. Ele acaba construindo uma base sólida de uma maneira completamente nova de se tocar guitarra”, explica Bruno.

Logo, a obra construída por Mestre Vieira já possui duas características importantes: o pioneirismo e a originalidade pela criação de uma maneira de se tocar guitarra. “O Pinduca se aproveita da popularidade do nome lambada, uma criação do radialista Haroldo Caraciolo, e grava a primeira música intitulada como lambada. Mas o Vieira vem e grava um disco inteiro de temas de lambada. Por isso, a gente costuma dizer que são três pais, Pinduca, Mestre Vieira e Haroldo Caraciolo. É inegável a grande contribuição de Mestre Vieira para a música da Amazônia. Foram mais de 25 álbuns gravados, dezenas de LPs, mais de dez CDs, um DVD no Theatro da Paz e este documentário que está para ser feito”, completa Bruno.

A série de animação “Os Dinâmicos” conta aventuras musicais inspiradas nas músicas e na banda Vieira e Seu Conjunto FOTO: RENATO REIS/DIVULGAÇÃO

Itinerância e série animada nos planos

Nesse embalo da memória de seis anos de partida do músico e de seus 90 anos de nascimento, Luciana Medeiros anuncia que também a série de animação “Os Dinâmicos”, que reúne 13 episódios de aventuras musicais inspiradas nas músicas e na banda Vieira e Seu Conjunto, voltará a ser exibida pela TV Cultura do Pará, graças ao edital da Lei Paulo Gustavo lançado via Fundação Paraense de Radiodifusão (Funtelpa).

“No momento, a meta é finalizar e lançar o documentário [‘Coisa Maravilha, a Invenção da Guitarrada’], depois fazer ele ganhar o mundo, contando a história de Joaquim de Lima Vieira e da guitarrada. Há outros dois projetos que eu gostaria de realizar, mas só vou dar spoiler de um, que se configura numa espécie de laboratório itinerante onde, por meio de oficinas e ações culturais, envolvendo audiovisual e música, chegaremos a outras cidades levando na bagagem todos esses projetos para compartilhar experiências e influenciar uma nova geração a pesquisar e produzir mestres e mestras da Amazônia. Vamos ver se conseguimos realizar”, torce Luciana.

MEMORIAL

Outro projeto ainda indeterminado é o Memorial Mestre Vieira, em Barcarena, que não foi concluído e está nas mãos dos filhos do artista. “A casa em que viveu Mestre Vieira, em Barcarena, continua lá, com seu quarto, onde seus filhos mantêm alguns objetos e instrumentos que ele tocava. Então, isso tudo envolve a família e recursos, além de um bom projeto de execução para a reforma que seria necessária. Demos início a esse levantamento em 2019, mas não avançamos, por falta de apoio mesmo”, lamenta a jornalista.

O guitarrista, falecido aos 83 anos, em sua cidade natal, Barcarena, não deixou de ser uma figura icônica e fundamental para a música. “Ele é como um guardião da tradição musical amazônica, especialmente da guitarrada. Ao manter seu legado, além de tudo, estamos preservando uma forma única de expressão artística que enriquece o patrimônio cultural do Brasil. E ao destacar a jornada e as conquistas de Mestre Vieira, no documentário ‘Coisa Maravilha, a Invenção da Guitarrada’, estamos mais uma vez garantindo que sua influência continue a moldar e inspirar as presentes e futuras gerações”, ressaltou Luciana.

A guitarrada foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial paraense em 2011 (Lei nº 7.499/2011). E além da guitarrada enquanto gênero musical, também foi sancionada nova lei, em maio do ano passado, tornando a obra de Mestre Vieira um patrimônio cultural (Lei n° 9.919/2023). “Ambas as leis baseiam-se na trajetória do mestre. E soube que ainda há outro PL [projeto de lei] que deseja tornar o 29 de outubro [data de nascimento de Vieira] o Dia Estadual da Guitarrada. Em Barcarena, a data já é Dia Municipal da Guitarrada. Tudo isso é importante, fortalece um movimento musical que só cresce e nos dá esperança para obter mais apoios, além do fundamental, que é construir políticas públicas de cultura voltadas a esse patrimônio”, finalizou Luciana.