O ano de 2024 marca o renascimento da maior poeta viva do Brasil. No fim do mês passado, Adélia Prado venceu, no intervalo de cinco dias, dois grandes prêmios, ambos pelo conjunto da obra: o Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras (ABL); e o Camões, maior recompensa de língua portuguesa. Ela receberá R$100 mil pelo primeiro e 100 mil euros (cerca de R$ 590 mil) pelo segundo.
As láureas chegam no momento em que a autora, de 88 anos, prepara “Jardim das Oliveiras” – o seu primeiro livro com poemas inéditos desde “Miserere”, de 2013. Nesse período, a mineira de Divinópolis sofreu com as angústias da página em branco e com problemas de saúde.
Os poemas da nova coletânea, que deve sair ainda este ano pela Editora Record, vão refletir esse período de turbulência. A obra já está pronta “na cabeça” da autora, mas ainda precisa ser finalizada no papel.
“Fui ‘atropelada por um caminhão’ que nunca imaginei poder estar na mesma estrada que eu”, conta em entrevista, que contou com a intermediação da filha Ana “pilotando” o WhatsApp da poeta. “Começar a escrever o livro foi um sinal de recuperação da normalidade. O livro não reflete apenas a minha situação, mas a condição humana. O que é um alívio”.
Formada em Filosofia, Adélia começou a carreira literária de forma tardia, aos 40 anos, com o livro “Bagagem”, de 1976. Uma obra ao mesmo tempo “bíblica, lírica, existencial”, segundo ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade, cujos elogios foram decisivos para sua consagração nacional. Talvez por conta da admiração do mestre, ela seja ligada pelos críticos ao movimento modernista.
CORAÇÃO DE CADELA
Em cinco décadas, Adélia publicou “O Coração Disparado” (prêmio Jabuti em 1978), “Os Componentes da Banda” (1984) e “O Homem da Mão Seca” (1994), entre outros. Foi estudada na Universidade de Princeton e adaptada para o teatro por Fernanda Montenegro (o espetáculo “Dona Doida: um interlúdio”, de 1987).
Católica fervorosa, seus poemas se equilibram entre a religião, o desejo feminino e a morte. Juntam o temor a Deus com muita safadeza.
Após o anúncio do Camões, o crítico literário Schneider Carpeggiani usou a rede X para convocar as novas gerações a buscarem no Google o poema “Bairro”, datado de 1978. “Pouca gente fala de tesão como Adélia”, justificou ele.
No poema em questão, a poeta se derrete pelo quadril “tão sedutor” de um homem que “palita os dentes” e “fala errado que arranha”. Ela continua: “Me põe tão íntima, simples, tão à flor da pele o amor,/ o samba-canção, o fato de que vamos morrer/ e como é bom a geladeira,/ o crucifixo que mamãe lhe deu, o cordão de ouro sobre o frágil peito/ que./ Ele esgravata os dentes com o palito,/ esgravata é meu coração de cadela”.
Os versos rapidamente viralizaram no X e os mais jovens, de fato, reconheceram que a senhorinha tem mais ardor do que uma capa de romance hot. “A última linha me ganhou demais”, escreveu uma usuária. “Estou completamente adelia pradizada”, definiu outra. Um internauta compartilhou uma antiga foto de uma Adélia Prado mais nova e sorridente, com a legenda: “O sorriso no rosto de quem romantiza uma palitada como ninguém.”
O novo livro de Adélia, “Jardim das Oliveiras”, deve seu título ao local onde, segundo a Bíblia, Jesus e seus discípulos oraram na noite anterior à crucificação. Identificado como Getsêmani, o jardim está situado no início do Monte das Oliveiras, em Jerusalém. De acordo com o evangelista Lucas, a agonia de Jesus no Getsêmani foi tão intensa que o seu suor se transformou em gotas de sangue.
* Bolívar Torres – AGÊNCIA O GLOBO