
Rogério Parreira*
Citando um trecho do manifesto “Estética da fome”, escrito pelo imortal cineasta brasileiro Glauber Rocha: “Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo”. Então, nesse contexto, o filme Ainda estou aqui aprofunda o cinema brasileiro na temática e na linguagem audiovisual.
Entre as primeiras cenas do filme, uma sequência de câmera na mão que dialoga com o amadorismo dos registros documentais da família Paiva, me fez lembrar das inovações do cinema novo em suas origens, que transformava a escassez de recursos para fazer cinema em um trunfo para criação de uma nova linguagem cinematográfica, reconhecida mundialmente. No filme, é uma opção estética, e não econômica, mas com o mesmo grau de excelência na criatividade artística de um cinema brasileiro inovador. Que busca na realidade histórica profunda do país a inspiração necessária e salutar para fazer o bom cinema.
Viva o Cinema Brasileiro! O filme de Walter Salles Ainda estou aqui é uma obra prima e madura, que retrata com maestria uma parte da história da família do ex-deputado federal e engenheiro civil Rubens Beyrodt Paiva, a partir da época dos anos de chumbo, pós Ato Institucional n0. 5, no auge da ditadura das sombras e do terror no Brasil. O roteiro foi baseado no livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, obra autobiográfica, em homenagem à sua mãe, Eunice Paiva. Rubens, que teve seu mandato cassado pelo regime militar em 1964, se autoexilou e retornou ao Brasil para exercer a engenharia, cuidar da família, mantendo contato e solidariedade com os amigos exilados políticos, prestando apoios singelos a eles, entre os quais, a entrega de correspondências para os familiares, mas sem envolvimento com a luta armada. Foi sequestrado e brutalmente assassinado pela ditadura em 1971.
Um ponto importante na elaboração do filme é que Walter Salles conviveu no ambiente da família Paiva, sendo amigo de Marcelo e suas irmãs, o que coloca o autor em lugar muito privilegiado na construção da narrativa. Com uma direção de arte perfeita, as cenas do casarão da família são impressionantes, pela riqueza de detalhes, “pari passu” a casa original segundo depoimento de Marcelo.
Casamento perfeito da luz com a narrativa, como no filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, em que a fotografia com a luz “estourada” traduz o calor do sertão nordestino, as diferentes granulações e texturas das películas (câmeras, lentes e filmes distintos para os anos de 1970, 1996 e 2014), chegando até em imagens capturadas em super 8, utilizadas pela fotografia do filme Ainda estou aqui, onde o grão da imagem é um elemento narrativo, proporcionam essa volta fiel ao passado.
Lembrando da definição de cinema de Júlio Bressane: “O cinema é a música da luz”. E podemos dizer que a direção de fotografia do filme é primorosa e inventiva, ainda mais pelo desuso das películas no cinema atual e a padronização da imagem digital, fato esse que exigiu muito mais trabalho e cuidados da equipe, com a revelação e posterior digitalização das imagens para exibição. E não poderia deixar de ressaltar a trilha sonora maravilhosa do filme, marcada com o que existe de melhor na música brasileira, de Tom Zé, Gal Costa, Tim Maia, Mutantes, Caetano Veloso, Nelson Sargento, Roberto Carlos, entre outras; e, ao final, a música “É preciso dar um jeito, meu amigo”, de Erasmo Carlos, em sintonia perfeita com aquele período da história.
O filme é uma história de amor à família e ao Brasil, com espírito político profundo, sem ser proselitista, sensibilizando o público, através do foco na família, dando esse caráter universal. Família essa que sofre um golpe irreparável e quase mortal, como o nosso próprio país em 1964. Rubens Paiva, interpretado por Selton Mello, é arrancado dos seus, assim como a democracia nos foi usurpada de forma covarde e tirana. Paiva é levado por agentes da maldade, sob o olhar de sua esposa Eunice Paiva, que nunca mais irá revê-lo e nem sequer terá o direito de velar e enterrar o seu corpo.
A escuridão de um regime político de exceção se abate de forma cruel e avassaladora sobre uma família feliz de classe média alta. Nesse momento, Eunice Paiva renasce com a força e a grandeza simbolizada pelo mar, no mesmo mar onde os restos mortais de Rubens foram depositados clandestinamente, pelos homicidas e torturadores covardes do exército brasileiro (segundo as apurações da Comissão da Verdade instaurada no Governo Dilma Rousseff). Eunice, que é interpretada pela magistral Fernanda Torres, assume a centralidade do filme e de forma fenomenal protagoniza cenas e momentos que serão difíceis de apagar da memória, tal é o poder da personagem e da atriz, que já faturou o Globo de Ouro, como melhor atriz em filme dramático. Ela interpreta cenas tocantes, como a da chegada da prisão, ao tomar banho, e da sorveteria, quando contém a emoção ao ver uma família reunida em uma mesa perto da sua. Contenção essa que se torna a marca de um sofrimento silencioso, mas que infunde em nós um profundo sentimento de compaixão. E passamos a sentir e sofrer junto com ela: somos arrebatados para dentro do coração de Eunice Paiva, um coração forte, valente, de uma Mãe e Esposa exemplar. Eunice vai crescendo e se tornando maior que os seus problemas, que são muitos: de ordem financeira, impossibilitada de ter acesso à conta bancária do marido, de ter que transmitir força, serenidade aos filhos, trilhar uma carreira universitária e se tornar advogada. E aqui uma virtude da família Paiva, já desenvolvida por Rubens, o altruísmo. Ele, que jamais foi indiferente aos amigos presos, perseguidos e exilados, causa de seu martírio. Eunice também entra nessa luta ao lado de famílias que tiveram membros desaparecidos e mortos pela ditadura militar, vai além, e se torna uma incansável defensora dos povos originários, uma das poucas no Brasil especializada em direito ambiental dos referidos povos.
Na sequência final do filme, Fernanda Torres cede lugar para sua mãe, Fernanda Montenegro, na interpretação de Eunice Paiva idosa e com Alzheimer avançado. Que brilhantismo: mãe e filha juntas no mesmo filme de Walter, muito talento reunido, um toque muito especial, já que ambas haviam trabalhado separadamente com o mesmo diretor nos filmes Terra estrangeira e Central do Brasil. Não poderia haver escolha melhor. Fernanda Montenegro vem para coroar a obra, com sua maestria – as Fernandas estão à altura histórica da personagem, representando de forma irretocável essa mulher poderosa e heroína da vida real brasileira.
É gigante o papel de Eunice Paiva para o Brasil e como foi pequeno, desprezível e maléfico o regime militar, que matou, torturou e furtou a democracia do nosso País. E o filme consegue, de forma inteligente e cuidadosa, cumprir a sua missão de contar a história da vitória dessa mulher magnífica sobre o dragão da maldade, espírito do mal que habitou o Brasil por 21 anos. O filme também representa um grito de alerta para muitos brasileiros desavisados, que sofrem de uma dissonância cognitiva coletiva e bravejaram há bem pouco tempo na frente de quartéis pela volta da ditadura. E faz com que o filme dialogue de forma consequente e assertiva com a nossa conjuntura atual, uma luz para o fortalecimento da democracia brasileira e suas instituições. Ditadura Nunca Mais! Rubens Paiva, presente!
* Rogério José Parreira é mestre em Ciências Biológicas, crítico de cinema e cineasta documentarista com realizações focadas na cultura paraense, como “Chama Verequete” (2002), “Puxirum” (2008), “Cordão do Galo” (2009) e “Porto Max” (2010).