CRÍTICA

Minissérie “Pssica” revela desafios na representação da Amazônia

Poucas narrativas nacionais, consideradas canônicas, ou seja, incontornáveis, tratam do segundo maior estado da federação, localizado na Amazônia, na região Norte

A paraense Domithila Cattete em cena da série “Pssica”, da Netflix. FOTO: NETFLIX/DIVULGAÇÃO
A paraense Domithila Cattete em cena da série “Pssica”, da Netflix. FOTO: NETFLIX/DIVULGAÇÃO

O Pará não é um lugar para onde os olhos normalmente se voltam. Poucas narrativas nacionais, consideradas canônicas, ou seja, incontornáveis, tratam do segundo maior estado da federação, localizado na Amazônia, na região Norte. Edyr Augusto, ao publicar “Pssica”, dez anos atrás, falou da necessidade de usar a prosa ficcional para registrar a realidade. E o romance policial, extremamente permeado pela violência, faz isso ao denunciar o estado de sítio em que as pessoas mais vulneráveis se encontram em Belém, pelos municípios da Ilha do Marajó, e em Caiena, na Guiana Francesa. Do ponto de vista dramático e estético-literário, trazer um cenário de miséria humana, onde pessoas são colocadas em situações-limite e precisam encontrar formas de escapar da realidade é um acerto.

Das 96 páginas de “Pssica”, então, o roteirista-chefe Bráulio Mantovani e os outros membros da sua sala de roteiro – Stephanie Degreas e Fernando Garrido, extraíram uma narrativa para os quatro episódios da minissérie homônima, sob a direção geral de Quico Meirelles (filho de Fernando Meirelles), produzida pela O2 e que está no catálogo da Netflix nas primeiras posições do ranking global de séries.

A colaboração de Mantovani com Meirelles-pai já havia resultado em “Cidade de Deus”, roteiro reconhecido como um dos 100 melhores do século 21 em eleição promovida pela WGA. Mas a tônica da adaptação, ou melhor, do processo de transmutação que envolve uma adaptação literária, é endereçada em “Pssica”, a série, como um sintoma dos seus problemas narrativos: o ritmo e o fluxo do livro, ora catártico e compassado, ora frenético e extremamente visceral, com falas e personagens se sobrepondo em um mesmo cenário não encontra reflexo na série:

“O universo da prosa literária do Edyr Augusto é muito sintético e o nosso trabalho foi preencher os espaços presentes, transformando em ação dramática; mas não sei se conseguimos produzir bons roteiros. Agora creio que os personagens muito ricos e repletos de dores estão impressos na tela, e o espírito da obra está lá também”, disse Mantovani, no Q&A realizado antes da exibição do primeiro episódio, quando do lançamento da série na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.

Bom, está no ar para se tirar a prova dos nove, em especial a quem leu o livro, se a série perfaz uma boa adaptação para além do sucesso de audiência que tem alcançado. A começar com o que “Pssica” mantém de essência – a série inicia da mesma maneira do livro, com a queda de Janalice após esta sofrer slutshaming (ter um vídeo íntimo seu vazado e exposto na internet), ela, uma adolescente de 14 para 15 anos, moradora de uma ilha no entorno de Belém. E Quico Meirelles, com consultoria criativa de Fernando Meirelles, aborda os roteiros usando um recurso visual que é intercalar algumas sequências com trechos dos capítulos do livro. Estilisticamente resulta em algo cafona, mas talvez seja entendido que é necessário explicar algumas expressões ou acentuar a nuance de uma determinada cena, para as audiências a compreenderem plenamente.

Interpretada pela paraense Domithila Cattete, um dos “rostos frescos que causam impacto sem estar necessariamente ligados à série da semana passada”, como assinalou Quico no lançamento, Janalice está mais como protagonista na série do que no livro, onde esse papel cabe também a Portuga, Manoel Tourinhos, na verdade um angolano que teve a esposa, Ana Maura, assassinada pela gangue de ratos d’água (espécie de piratas dos rios); na adaptação, Portuga se transforma na colombiana Mariangel (vivida pela estupenda Marleyda Soto), que busca vingança pela morte do filho e do marido. A ela se alia Zé do Boi (Maycon Douglas), um vaqueiro que, na série, tinha um relacionamento com o filho dela.

As mudanças, mais alinhadas a vetores de diversidade, são benéficas para o conjunto, e tornam “Pssica” uma obra menos misógina e machista que o livro. Mas uma história tão violenta, trágica e densa precisaria de melhores intérpretes para ter mais qualidade, o que não ocorre, mesmo com a preparação troiana de Fátima Toledo, pois tanto Domithila quanto Lucas Galvino (Jonas/Préa) não convencem na pele de duas vítimas da paixão. Ela, talvez por falta de experiência, já que as caras de raiva e pavor a fazem parecer mais emburrada do que realmente alguém que está sofrendo, e o intérprete do líder da gangue do Tabaco (Denis Lopes, ótimo) é sublimado em todas as cenas que tem ao lado de David Santos, que faz o Gigante, seu arquirrival.

Os atores Lucas Galvino, Domithila Cattete e Marleyda Soto com os diretores Quico Meirelles e Fernando Meirelles. FOTO: FERNANDA TINE/NETFLIX/DIVULGAÇÃO
Os atores Lucas Galvino, Domithila Cattete e Marleyda Soto com os diretores Quico Meirelles e Fernando Meirelles. FOTO: FERNANDA TINE/NETFLIX/DIVULGAÇÃO

Se o roteiro não evita constrangimentos, como no segundo episódio, onde uma perseguição de Mariangel e Zé do Boi os leva de Belém para Tucuruí e de lá para Breves, como se ambas as cidades ficassem a alguns quilômetros de distância no Marajó, ou a profusão de usos equivocados de gírias como égua (“seu égua?”), ou até a escapulida de alguns atores nordestinos, com expressões que não perfazem o falar paraense, a síntese dessa falha seria a atriz Ademara, que não consegue pronunciar corretamente nenhuma sentença por conta de seu sotaque pernambucano dominante. Na contramão, o elenco traz atores e atrizes brilhantes em papéis coadjuvantes, como Ana Luiza Rios vivendo a mãe de Janalice, Claudio Jaborandy (Zé Elídio), Gabriel Knoxx (de “Noites Alienígenas”), o também pernambucano Sandro Guerra – um perfeito paraense como Amadeu -, Isabela Catão, Ricardo Teodoro e Alice Marta Maia, além de Welket Bungué, que brilha como o cafetão Soutin.

E se a produção da O2 e da Netflix ainda menospreza os profissionais do audiovisual paraense, que participam em funções de assistência e de base da equipe técnica da minissérie, os atores e atrizes paraenses até que conseguem destaque em “Pssica”, como Alberto Silva Neto, que faz o prefeito Brazão e tem um bom tempo de tela, especialmente no terceiro episódio (dirigido por Fernando Meirelles), onde uma grande festa termina em tiroteio e mortes. Ainda estão na série, Paulo Marat, Leoci Medeiros, Keila Gentil, Ramón Rivera, Tatá Pacheco, Alexandre Rosendo, Leonel Ferreira, Betty Dopazo, Nany Figueiredo e Marluce Oliveira.

Alguns atores indígenas aparecem com relevo em “Pssica”, como Luca Dan, ator indígena Kariri, que faz o menino de rua Miltinho, buscando pela irmã, Luzia, interpretada pela amazonense Sendi Baré. A menina tem mais tempo de tela, pois é a principal confidente de Janalice. As outras meninas traficadas com a personagem de Cattete, aparentemente são interpretadas por atrizes nortistas, Letícia Henschel, Letícia Progenio e Iasmin Simões. Um ponto no quesito representatividade para a produção. Outro ponto é que sim, a estética de “Pssica” traz o calor e alguns sons da Amazônia urbana e rural para o streaming, as cores e cheiros do mercado do Ver-o-Peso, de um bar flutuante no Marajó, das vielas da Vila da Barca, num trabalho tecnicamente bem realizado e bem superior a outra produção do streaming filmada na região, “Cidade Invisível”.

A saga da menina galega, branca de olhos claros, vítima da violência patriarcal que a leva a ser sequestrada, estuprada e depois traficada, até cruzar caminhos com o criminoso Preá e a ex-guerrilheira Mariangel tem apelo. O porém é que, às vésperas da COP30 e com toda a xenofobia e preconceito que vem sendo destilado em direção ao Pará e à Amazônia, “Pssica” reforça estereótipos e alarga diferenças. Não existe possibilidade de outras narrativas nesse território que não sejam de dor, de destruição, mesmo que, de forma cínica e até demagógica, no fim, haja uma forma de escape e de salvação (ao som da belíssima “Ave do Amor”, canção de Arthur Nogueira na voz da nossa sabiá, Fafá de Belém).

Entre linguagens

“Eu te roguei uma praga, Portuga. Uma pssica pra vocês não serem felizes. Pra ela voltar pra mim. Pra matar a vontade de ter a vida que não tive com ela. Os filhos.”

(trecho do livro “Pssica”)

O equívoco da série começa pelo próprio título, “Pssica”, que significa “mau agouro” ou jogar uma praga para alguém, para a vida dessa pessoa desandar. O capítulo inicial reforça mais de uma vez o significante e significado da palavra (textualmente) sem exemplificar numa situação dramática do que se trata. Só se vê Janalice repetindo a palavra para os seus raptores ou abusadores.

*Lorenna Montenegro é jornalista, professora, crítica de cinema e roteirista.