
Esqueça “Parasita”. Cinco anos após ganhar a Palma de Ouro em Cannes e levar para casa quatro estatuetas, uma delas o Oscar de melhor filme, o primeiro de um longa falado em outra língua que não a inglesa, o sul-coreano Bong Joon Ho conta, em “Mickey 17”, a partir desta quinta-feira nos cinemas, uma história mais próxima, em tom e tema, quase o fim de uma trilogia, de suas duas produções imediatamente anteriores ao título pelo qual é mais celebrado, pela ordem, “Expresso do amanhã” (2013) e “Okja” (2017), ambas com Tilda Swinton. Desta vez, seu maior trunfo é um Robert Pattinson especialmente inspirado no papel-título e em sua encarnação seguinte, o Mickey 18. Na definição do próprio diretor, de 55 anos, ele fez um “filme de ficção científica que não quer ser um filme de ficção científica”.
“Nele, as pessoas vão para planetas alienígenas e há, sim, uma nave. Mas “Mickey 17″ não é um épico espacial. Quis investigar o quão tolos podemos ser, mas como essa mesma tolice pode tornar-nos mais amáveis. As pessoas têm me dito que o filme é caloroso em comparação com os anteriores, vistos como implacáveis e cínicos. Talvez seja porque estou envelhecendo, mas não foi tão ruim ouvir essas reações”, disse o diretor, após as primeiras apresentações do longa, em resposta enviada pelo estúdio da produção, a Warner.
Se “Parasita” é uma investigação nada sutil sobre a desigualdade social na sociedade coreana contemporânea, “Mickey 17”, apresentado pela primeira vez no Festival de Cinema de Berlim, mês passado, transporta o espectador para um futuro nem tão distante assim, onde viver em uma Terra desfigurada pela crise climática e pelos avanços tecnológicos se tornou sufocante.
Para contar a história de Mickey Barnes, Bong adaptou “Mickey 7”, livro lançado em 2022 pelo americano Edward Ashton, especialista em física quântica que se diz influenciado por George R.R. Martin (“Game of thrones”). Bong avança dez edições do mesmo Mickey em seu longa. No filme, o personagem de Pattinson é inicialmente um ordinário doceiro londrino, especializado em macarons, que, ameaçado de morte por não pagar uma dívida a um agiota, embarca, ao lado de um grupo que inclui aventureiros, solitários, mercenários, e seguidores de um político populista de direita, para o distante, gélido e cavernoso planeta Niflheim.
“O roteiro de ‘Mickey 17’ foi das coisas mais loucas que já li. Arriscado, mas de uma maneira boa. Quando as pessoas me perguntam, o mais perto que chego para descrevê-lo é se tratar de um mix de farsa com ficção científica. E que meu personagem é algo como uma versão extrema de se dar uma boa olhada em si mesmo no espelho”, afirmou o ator inglês, de 38 anos.
Mickey não é apenas um sujeito comum, mas um tanto quanto abobalhado. Ele só consegue embarcar na nave espacial após topar, sem ler direito o contrato, o posto de cobaia da expedição – concorda em morrer seguidamente para o bem geral, com sua consciência imediatamente implantada em uma nova cópia. O termo exato, forte, é “dispensável”. Quando o filme começa, ele já está em sua 17ª encarnação, tendo perecido, entre outras razões, ao ser destruído por um vírus similar ao Ebola, mas extraterrestre, e assim facilitar a descoberta de uma vacina para os demais patógenos ao estabelecer contato com os povos originários a serem colonizados. Mas algo dá errado e ele aparece em dose dupla na segunda parte das 2h17 de exibição, com a versão 17 convivendo, o que é legalmente proibido, com a 18.
Ética
Mais do que uma nova investigação sobre imortalidade e clonagem, Edward Ashton discutiu em seu livro, traduzido no Brasil pela Planeta Minotauro, a ética de se carregar a consciência humana em outros corpos idênticos ao original. Usou o termo “impressão” e fascinou Bong. A brutalidade com que tratamos uns aos outros, tema central na cinematografia do sul-coreano, volta com força em um profissional que precisa, sem figura de linguagem, morrer de tanto trabalhar para provar seu valor.
“Impressão de corpos é termo original do Edward. A ideia de homens percebidos no futuro como um pedaço de papel, um documento, me fez mergulhar completa e instantaneamente, vá lá, de corpo inteiro, naquele mundo que eu gostaria de criar”, contou Bong.
Embarcam com o Mickey de Pattinson seu amigo Timo, um sujeito aproveitador e oportunista, vivido com a destreza de sempre por Steven Yeun (o Danny da série “Treta”), e a valente Nasha, o coração do filme, que, em uma inversão proposital do estereótipo masculino/feminino, adota, protege e ama cada versão do ex-confeiteiro. É vivida por Naomi Ackie, de “Star Wars: Episódio IX – A ascensão Skywalker”, outro destaque do filme.
Funciona menos o casal vivido por Mark Ruffalo e Toni Collete, pensados como alívio cômico no papel de um “típico ditador”, nas palavras de Bong, interessado em iniciar um mundo sem “outras raças”, e a mulher, mais interessada em condimentos do que em seus companheiros de viagem espacial. Um tanto quanto didática, a sátira política proposta por Bong em “Mickey 17” se dá nos paralelos com o trumpismo, embora o filme tenha sido finalizado antes da confirmação da segunda temporada do republicano na Casa Branca.
“Jamais gostaria que meus filmes se tornassem propaganda política. Mas tudo o que acontece com Mickey, a maneira como ele é tratado, tem, sim, uma dimensão política, relacionada à forma como tratamos e respeitamos os outros. E as lutas, tanto de Mickey 17 quanto de Mickey 18, estão inseridas, naturalmente, em um contexto político”, disse o diretor.
Mesmo em uma megaprodução estimada em US$ 120 milhões, “Mickey 17” chama a atenção pelo artesanato de Bong Joon Ho. O diretor escreve todos os seus roteiros (“sempre um processo difícil, que dura de seis a oito meses”, contou), edita enquanto filma, e faz storyboards do próprio punho, bastante exatos em relação ao enquadramento e aos movimentos da câmera, distribuídos a elenco e equipe de produção com antecedência. E só começa a filmar após cada cena ser desenhada, “ou não me sinto seguro”.
“Como costumo ficar com os storyboards 99% do tempo durante a filmagem, o filme acaba não sendo tão diferente assim do que rabisquei. Mas, ao mesmo tempo, acolho improvisações do elenco, o que parece contraditório. Estabeleço firmemente quais serão os posicionamentos da câmera e os enquadramentos nos storyboards, mas peço aos atores para ficarem confortáveis e livres o máximo possível. É um paradoxo, mas é assim que trabalho”, explicou. (Eduardo Graça)