
A feiticeira Narjara, ao descobrir que o caçador Rafael, o homem a quem ama, está namorando a princesa Amara, protetora do pássaro Tem-Tem, irmã da fada Isabel e filha de Flora, a rainha da floresta, com o fazendeiro de cacau coronel Amaro, tenta uma armação para que a ave caia nas mãos de Lorde, um colecionador inglês, para culpar o caçador e, assim, provocar o rompimento do romance da princesa com o plebeu. Mas ao descobrir que é irmã de Amara, a feiticeira desiste do maldoso plano.
Com esse enredo de amor, intriga e traição, mas com final feliz, o Cordão de Pássaro Junino Tem-Tem, de Outeiro, apresentou a peça “A Obsessão de Narjara”, na tarde de domingo, 22, no segundo dia de apresentações do Arraial de Belém 2025 , na Biblioteca Municipal Avertano Rocha, no distrito de Icoaraci.
“A rainha Flora vem para trazer a união entre todas as filhas dela e trazer a paz para a humanidade junto com a floresta”, explica Krystara Monteiro, aluna da Escola de Teatro da UFPA, que representa a personagem, e pela primeira vez participa de um cordão de pássaro.
O Tem-Tem de Outeiro foi fundado em 1984, na vila de Icoaraci, por dona Jorsonleide de Paula Paes, a mestra Zula, e 13 anos depois se mudou para o distrito de Outeiro. A mestra tem hoje 89 anos e devido às condições de saúde, passou para a filha Inaiá Paes a responsabilidade de manter a tradição que já dura 41 anos.
“O nosso grupo é um pássaro de tradição, voltado para a cultura do pássaro ainda, do remanescente, dos antigos, mesmo. Por isso, ele é cordão, ele não é melodrama fantasia. Ele se apresenta com todos os personagens em cena e em arco”, explica a guardiã Inaiá Paz.
O empresário Ednaldo Pacheco prestigiou o evento, que o fez relembrar o tempo de quando era criança em Icoaraci e via as apresentações dos pássaros juninos.
“A gente observa, nesta apresentação do Pássaro Tem-Tem, que é algo que estava esquecido. A gente sente também a ausência do público, talvez por uma falta de uma divulgação melhor, um apoio melhor para essas pessoas, que estão resgatando algo que há muitos anos tinha bastante em Icoaraci, e hoje em dia a gente quase não ouve falar”, externou Pacheco.
Pipira de Água Boa
Outro grupo tradicional a se apresentar foi o Cordão de Pássaro Junino Pipira de Água Boa. A peça “O Vale Encantado” conta a história de um rei que foi enfeitiçado com o chá do Tamaquaré. E para curar o pai, a princesa vai à mata – onde vive a pipira – buscar a planta Tambatajá, que salva a vida do monarca. Para encenar o enredo, os jovens atores e atrizes usaram as danças do ventre, tribal, do boto e carimbó.
O Tamaquaré é um lagarto existente nos igapós do Estado do Pará, que se camufla diante do perigo de um predador. No imaginário amazônico, o chá ou pó derivado dessa espécie serve para deixar a pessoa boba, como também para amansar uma esposa ou marido traídos. Essa crença popular é cantada em verso e prosa, como no carimbó chamegado “Feitiço Caboclo”, de Dona Onete, que narra uma infidelidade conjugal resolvida com o chá, que deixa o traidor “abestado”, seja homem ou mulher.
O Pipira de Água Boa existe há duas décadas e tem esse nome por ter sua sede no bairro Água Boa, na ilha de Caratateua, distrito de Outeiro. “Nesses 20 anos de existência, [desenvolvemos] um trabalho árduo, de resistência, para preservar a cultura dos cordões de pássaros”, explica a guardiã Yara Coutinho.
Ana Bárbara, de 14 anos, interpreta a princesa Catarina, que colhe a Tambatajá para curar o pai abobalhado pelo chá do Tamaquaré e, com isso, também salvar a pipira das ameaças do caçador. “ É uma experiência muito boa, muito legal. Eu tô desde pequenininha [no cordão do pássaro]. Então é muito legal, uma experiência de vida muito importante”, diz Ana.
Para o ator Salustiano Vilhena, que fundou em Icoaraci o grupo de teatro Gruta, nos anos 1960, até hoje em atividade, os cordões de pássaros merecem ter mais apoio, não somente do poder público, mas também da própria comunidade onde existem.
“Eu sofro muito, porque vejo a luta dessas pessoas para poder manter a tradição firme ainda em movimento, porque, de certa forma, a cultura é um movimento constante. Inclusive, com mudanças de acordo com a sociedade, de acordo com a evolução da sociedade. E hoje me trouxe a memória da infância. Quando eu era criança vi muitos cordões de pássaros e bichos juninos, que era muito frequente, porque meus pais faziam questão de me levar para assistir esse tipo de expressão artística”, fala Salustiano, emocionado.
A Mostra Cultural do Arraial de Belém 2, destinado aos grupos folclóricos de pássaros e bichos juninos, é uma promoção da Prefeitura Municipal, por meio da Secretaria de Cultura e Turismo |(Semcult), que programou uma série de eventos de época até o final de junho.