“Deve ser difícil não ser baiano!”, brinca Luiz Caldas, atração especialíssima do Festival de Verão Salvador, que celebra neste sábado os 40 anos da axé music. A razão de ele estar lá é muito simples: sua estreia em LP como artista solo, “Magia” (1985), é considerada o ponto zero do estilo que ganhou o Brasil e o mundo. Cantor, compositor e multi-instrumentista, o baiano, de Feira de Santana, conseguiu com este trabalho, de quando tinha apenas 22 anos de idade, sintetizar ijexá, o frevo eletrificado do carnaval, merengue, reggae e pop numa explosão que deixou marcas naquele meio de anos 1980, com o hit “Fricote”.
Para Luiz Caldas, “Magia” é resultado “de uma época boa, em que a gente formava verdadeiros times para poder fazer um disco”. O disco foi produzido num momento em que trabalhava em Salvador no estúdio WR, gravando jingles. Ele tinha a banda Acordes Verdes, composta por, entre outros, um ainda pouco conhecido Carlinhos Brown na percussão e o seu irmão, Paulinho Caldas, nos vocais de apoio. Nos momentos vagos do estúdio, o músico aproveitava a banda e gravava com ela as suas canções, de uma carreira que vinha desde a adolescência, em que fazia parte do Trio Tapajós.
“Aquele era um momento difícil, porque tinha ali Pepeu ( Gomes ) e Armandinho, dois grandes guitarristas com carreira engatilhada, e eu não podia ser uma cópia deles”, conta Luiz, que produziu o seu disco com Wesley Rangel, dono do WR. “Aí entraram ( os produtores ) Roberto Sant’Ana e José Vicente Brizola, que criaram o selo Nova República e lançaram o disco. Ele vendeu cem mil cópias, de cara. Aí eles venderam o selo para a PolyGram ( atual Universal Music), que era grande na época, e o ‘Magia’ foi relançado no mesmo ano para o Brasil. Foi um disco que teve muitas mãos produzindo, ajudando de várias formas, com vários olhares.”
Quando “Fricote” ganhou as rádios do Brasil, de um dia para o outro Luiz Caldas virou um ídolo popular, assediado. Mas quem disse que isso o assustou?
“Artista de trio elétrico não tem medo de tamanho de público, a gente está acostumado ao gigantismo. E eu já estava tentando ser um artista reconhecido no Brasil, minha batalha vem de muito antes. Quando aconteceu, não foi nenhuma surpresa, foi uma alegria”, garante.
Ele agradece a Deus por ter caído nas graças de apresentadores de TV “que eram ligados à alegria, ao bom humor e ao carnaval”, como Chacrinha, Fausto Silva e Bolinha.
“Tive sorte com esses caras levantando a minha carreira. O restante foi manutenção, com estudo e com respeito ao público, à carreira e ao próprio corpo”, diz Luiz Caldas, hoje um vegetariano, abstêmio e praticante de ioga.
O segredo de ter sobrevivido ao sucesso foi ter lutado para manter controle total sobre sua própria carreira.
“O Roberto Sant’Ana vendeu a Nova República pra PolyGram, mas não vendeu o meu contrato. Eu era um artista a peso de ouro, e gravadoras ofereciam advanced, apartamento ou carro, tentando me seduzir para que eu assinasse um contrato de três anos. E o que eu exigia é que ninguém poderia interferir na minha música, na minha produção, na minha roupa, no meu visual ou no meu nome”, revela. “Se você não tem liberdade para criar, acaba fazendo sempre uma cópia do que já foi feito. Depois do ‘Fricote’, o que eu mais ouvi foi gente perguntando quando ia ter o ‘Fricote 2’. E aí eu vim com ‘Ajayô’, que é totalmente diferente”.
Hoje, Luiz Caldas acompanha os desdobramentos de sua obra. Recentemente, “Haja amor” viralizou no TikTok (“eu me diverti muito com as crianças mandando vídeos de dancinhas para mim”).
“A gente tem que acompanhar a evolução tecnológica e tudo que rola na internet, sobretudo nas redes sociais. O engajamento é importante para a carreira musical caminhar por várias frentes”, acredita ele, que também viu, nas últimas semanas, “Tieta” (música de Boni e Paulo Debétio, para a qual ele criou o arranjo e foi o intérprete) voltar ao sucesso com a reprise da novela.
De uns tempos para cá, Luiz Caldas tem feito todo tipo de show, inclusive de chorinho, de jazz e de forró, do qual teve muitas lições com Luiz Gonzaga, na época dos bailes, antes mesmo de vir a gravar com ele em disco. Ele se lembra até hoje dos conselhos que o Velho Lua lhe deu, nos primeiros dias do sucesso:
“Ele perguntou: ‘Tá ganhando bem, né?’ E eu: ‘Sim, bastante dinheiro.’ Ele: ‘Tá guardando? Como tá?’ Eu: ‘Vou gastando.’ Aí ele disse: ‘Olha, se você ganhar dez, gaste oito e guarde dois.’ Como como era muito novo na época, e era um ídolo daqueles falando, isso entrou forte em mim e foi onde eu comecei a colocar os pés no chão. Aí eu fiz o contrário do que ele falou: gastava dois e guardava oito.”
A segurança financeira tem garantido tranquilidade a Luiz Caldas para tocar adiante um projeto de vida: desde 2013, ele tem gravado, inacreditavelmente, um disco por mês – um total de 144 álbuns, com umas 1.480 músicas, todas inéditas, disponibilizadas de graça em seu site, com participações de Fernanda Takai, Seu Jorge, Sandra de Sá, Chico César, Zeca Baleiro, Paulo Miklos e Arnaldo Antunes, entre outros astros. Um dos álbuns foi dedicado aos povos indígenas, com letras inteiramente em tupi.
“Eu gravo o que me dá vontade, estou a serviço da música”, diz ele, que ainda só não cantou em japonês e em francês porque acha complicado “o arranhado da garganta”.
Silvio Essinger/RIO, AGÊNCIA O GLOBO