
Nascida em Brasília de pais mineiros, Manuela Costa estava em Belo Horizonte, em 2005, aos 21 anos, quando foi ao cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis, o ponto que inspirou o nome Clube da Esquina. Fez mais: foi ao apartamento da família Borges, ali perto, e Lô, um dos líderes do clube que mudou a música brasileira com o disco homônimo de 1972, estava lá. Aquela jovem é agora, aos 40, parceira de seu ídolo no novo álbum dele, “Tobogã”.
Nos últimos anos, a médica Manuela vinha mandando mensagens para Lô (ou Salomão Borges Filho) com poemas. A amizade virtual se transformou num vínculo profissional.
– Ela me mandava poemas por e-mail e WhatsApp. Propus: “Vamos inverter o processo.” Passei a mandar melodias – conta Lô, por telefone, de Belo Horizonte. – Das 12 faixas do disco, ela escreveu oito letras para as minhas músicas e em quatro foi o contrário. Para uma letrista estreante, ela mandou muito bem. Minha aposta foi acertada.
A primeira da dupla foi “Pouso da manhã”, gravada com participação da própria Manuela – a outra convidada do álbum é Fernanda Takai, na faixa-título e em “Amor real”. Embora nunca tivesse feito antes letras para melodias, ela diz que teve a tarefa facilitada pela forma com que Lô mandava os áudios, deixando muito claros o número de sílabas e a acentuação.
– Eu brincava que ele compunha em “marcianês”, na língua de Marte, e que eu era apenas uma tradutora – diz Manuela. – Acredito que as traduções tenham sido fiéis, porque, como fã, eu coloquei nelas todo o meu amor, o meu respeito e a minha gratidão pela obra dele.
Aos 72 anos de idade e 52 de carreira, Lô está com fôlego juvenil. “Tobogã” – mesmo nome do livro de memórias de seu pai – é o sexto álbum de inéditas nos últimos seis anos.
– Não sei o que acontece comigo. De 2003 para cá, minha produção é o dobro do que fiz no século XX. Aumentou especialmente a partir de 2019. Acho que as músicas vêm do céu, mas é preciso buscar. Elas não vão cair na sua cabeça. É um esforço físico e intelectual – afirma. – Se Neil Young, que é um dos meus ídolos, faz dois ou três discos num ano, dizem que ele é muito produtivo. Como sou brasileiro… “ih, lá vem aquele chato!”.
A fase intensa começou com “Rio da lua” (2019), de parcerias com Nelson Angelo. No ano seguinte, “Dínamo”, feito com Makely Ka. Na pandemia, a produtividade aumentou.
– Não ia ser negacionista e sair por aí. Fiquei em casa compondo o tempo todo – recorda.
Lô diz ter mais álbuns de inéditas alinhavados, como “A estrada”, só de letras com seu irmão e parceiro mais constante, Márcio Borges – ele tem mais nove irmãos. E são repertórios de dez, 12 canções, como se fazia antes das plataformas de áudio, quando se tornou comum lançar músicas separadamente.
– Cresci ouvindo discos inteiros, é a minha formação. E perdi a manha de fazer uma só. Falo com o parceiro: “Bora fazer mais nove” – explica.
O ponto de partida da carreira de Lô é “Para Lennon e McCartney”, composta com Márcio e com Fernando Brant e lançada por Milton Nascimento em 1970. Dois anos depois, ele, com apenas 20, virou o segundo nome mais importante do álbum duplo “Clube da Esquina” por decisão de Milton.
– Eu não era conhecido nem em Belo Horizonte. Ficava naquela esquina tocando Chico Buarque e Beatles. Milton me levou da esquina para o estúdio – lembra Lô, grato ao amigo dez anos mais velho. – Devo muito ao Milton. O aprendizado com a musicalidade, com a generosidade dele. É um cara muito especial, um irmão. Era o 12º irmão Borges.
Ao ouvir composições presentes no “Clube da Esquina” como “Um girassol da cor do seu cabelo”, “Tudo que você podia ser”, “O trem azul” e “Paisagem da janela”, a gravadora Odeon reconheceu que o jovem tinha talento e lhe encomendou um disco solo para aquele mesmo 1972.
– Eu não tinha música, tinha gastado toda a minha produção de iniciante no “Clube” – conta. – Por irresponsabilidade, me senti desafiado. Eles esperavam canções solares e eu fiz um disco hermético, psicodélico, alternativo, lado B.
O LP ficou conhecido como “o disco do tênis”, por causa da foto de um tênis na capa. Apenas na década passada Lô fez shows com o repertório do álbum cultuado.
Além da velocidade com que compôs as músicas, há outro ponto que aproxima o disco de 1972 de “Tobogã”: o autor da foto da capa é o mesmo, Carlos da Silva Assunção Filho, o Cafi (1950-2019), também autor da imagem icônica de “Clube da Esquina”, com um menino negro ao lado de um menino branco. A foto de agora é de um Lô bem jovem, encontrada pelo compositor na internet.
Texto de: Luiz Fernando Vianna,
Texto de: Especial para O GLOBO