Ao telefone, Gilberto Gil fala sobre seu show “Tempo Rei”. Iniciada em março, por Salvador, em sua Bahia natal, a turnê já teve seis apresentações no Rio de Janeiro, quatro em São Paulo, além de Brasília, Belo Horizonte e Curitiba, todas com lotação esgotada. No próximo dia 9 de agosto, chega a Belém, onde ele se apresenta no Estádio Mangueirão – e assim como nos outros lugares por onde passou, deve contar no palco com artistas paraenses como convidados surpresas. Daqui, segue para Porto Alegre em setembro, e até o final de novembro tem outros oito shows agendados, datas extras para acalmar um público que quer mais. Mais de melodias e versos como os de “Tempo Rei”, “Drão”, “Aquele Abraço”, “Andar com Fé”, “Palco”…
É já de forma anunciada, a última turnê nesta escala em sua carreira. Sim, o tempo é mesmo rei e, aos 83 anos, Gil já disse não abandonar sua música, mas querer vivê-la noutro ritmo.
Em cada resposta, pausada, paciente, sua fala vai se construindo calma, reflexiva, sobre os momentos que já viveu, os que está vivendo nos encontros com seu público, tendo também a família no palco. Os filhos Nara, Bem e José o acompanham na turnê, assim como o neto João Gil. Eles integram a megabanda que segue com o cantor, junto com os músicos Diogo Gomes (sopro), Thiago Oliveira (sopro), Marlon Sette (sopro), Danilo Andrade (teclado), Leonardo Reis (percussão), Gustavo Di Dalva (percussão), Mestrinho (sanfona) e ainda um quarteto de cordas, num show construído de forma imersiva e sensorial.
Gil fala devagar porque não é preciso ter pressa. Num fluxo contínuo e sem pausa, porque o pensamento não para. E como já disse, sabiamente, ele próprio, o melhor lugar do mundo é aqui e agora. Confira a seguir a conversa do artista com o Você:
P Vamos falar do tema do show? Essa relação com o tempo aparece em muitas de suas músicas. Que reflexão tens feito sobre o tempo em meio a essa turnê?
R Como você mesma observa, o tempo é um assunto que aparece muito no meu trabalho, em várias canções, em várias sentenças, em várias frases, contextos temáticos. É uma preocupação que todos nós temos, essa questão da duração, o que veio antes, o inexistente antes de nós, e o que vai existir após a nossa existência aqui. Enfim, esse mistério profundo quase que indecifrável sobre as várias possibilidades de mensuração, de dimensionamento do tempo.
Tudo isso é uma coisa que está ligada aos nossos questionamentos permanentes sobre existirmos…a que será que se destina? Diria a frase da canção de Caetano. As pessoas sugeriram que nesse momento de uma turnê mais abrangente, em termos de grandes públicos, se desse o nome da canção “Tempo Rei”, uma dessas em que me refiro ao tempo, uma das mais queridas, uma das mais populares. Resolvi aceitar e a turnê já está praticamente na metade do seu decorrer.
P Não só “Tempo Rei”, como todas as outras músicas presentes no show, compõem um repertório muito emocional para os fãs. E imagino que para ti também. Como têm sido esses encontros com os fãs pelo Brasil, nesse formato de grandes shows?
R Essa questão emocional tem prevalecido muito. As pessoas basicamente têm se manifestado em relação a isso, ao fato de que toda a atmosfera do show, o repertório, as canções, o modo como nós nos apresentamos e desenvolvemos o repertório, todo ele puxa para uma coisa emocional muito grande. Acho que isso tem a ver com o fato de que são 60 e tantos anos de carreira, muitos desses momentos associados a questões fortes, existenciais não só minhas, mas da própria nacionalidade, dos brasileiros, da história da cultura popular do país. Tudo isso tem a ver com essa carga emocional muito forte que tem sido manifestada nesses encontros. Já foram 14 shows do “Tempo Rei” e essa carga emocional tem se reproduzido.
P Esse repertório acaba sendo também uma espécie de viagem dentro das próprias tradições da música brasileira, porque as tuas músicas abarcam muitas dessas vertentes. Tem a sanfona, tem o forró, tem o samba-canção, tem o pop… Como todas essas coisas te alimentam criativamente?
R Sem dúvida. Sempre alimentaram. Sempre fui um artista voltado, com minha sensibilidade musical, minha sensibilidade poética, meu campo de narrativas, tudo isso sempre esteve ligado a esse gosto pela música popular, pela canção popular. Os gêneros populares brasileiros sempre foram ingredientes básicos. Começaram pela minha paixão infantil, inicial, pelo baião, pelos gêneros nordestinos, depois o samba. Depois todas as formas que foram sendo absorvidas pela música popular no Brasil, as formas estrangeiras, as influências da música americana, da música caribenha, tudo isso foi formando esse campo de atração, de interesse para um artista popular como eu, um artista simples, de talento muito ligado a tudo isso. Então, a presença desses gêneros todos num show como “Tempo Rei” é uma coisa mais do que obrigatória e natural.
“Ouço tudo o que vem daí do Pará com muito gosto”
P Dentro dessa musicalidade brasileira, te interessa a musicalidade amazônica, paraense?
R Sim, óbvio. O grande interesse rítmico que a região amazônica tem em relação aos gêneros populares é uma coisa que se acentuou muito nos últimos anos, com a difusão, com a possibilidade de formação de novos artistas e novos meios de registro e comunicação da música da região. Tudo isso, o carimbó, uma coisa consolidada, com os gêneros híbridos ligados à música caribenha, à música funk, à música tecno, tudo isso interessa não só a mim, mas aos criadores de uma maneira geral no país inteiro. A música amazônica parte desse conjunto de modos de expressão musical já nacional. Hoje é prestigiada no país inteiro.
P Alguma coisa que tu escutes e goste especialmente?
R Eu escuto em geral coisas que tomam no rádio, nas festas populares, nas festas domésticas. Eu ouço tudo o que vem daí com muito gosto, com muito interesse, os guitarristas, particularmente interessantes aí da região, com um estilo próprio, com esse modo de misturar a coisa mais folclórica com a coisa mais pop. Tudo isso me interessa muito naturalmente, porque faz parte do entorno, do environment da música que nos cerca aqui o tempo todo nas grandes cidades do Brasil.
P Você é um dos grandes de uma geração de grandes artistas de tudo o que a gente costuma ter como referencial do que é a Música Popular Brasileira. Como te vês, historicamente, ao lado de Caetano, de Chico, de Milton, nessa geração seminal da MPB?
R É uma geração muito marcante, ela se insere na transição entre a fase mais embrionária da canção popular, com o samba carioca, com os grandes compositores, os grandes intérpretes cariocas, paulistas, baianos, pernambucanos, etc, que foram formando a MPB. E nossa geração, a minha, do Chico, do Milton, do Caetano, do Vandré, do Edu Lobo, da Elis Regina, da Gal Costa, da Maria Bethânia, desse pessoal todo, ela está ali na dianteira da transição daqueles primeiros momentos, onde o disco se destacava, a música carnavalesca, as marchas de carnaval, que tinham uma força muito grande na formação do gosto popular. Nós pertencemos à geração que foi transitando para a música popular, ou a denominação mais adequada é pop, da música popular com forte presença internacional, etc. Nós pertencemos a este mundo. Depois da nossa, veio a geração do rock ‘n’ roll, muito afetada pela Jovem Guarda, também um movimento da nossa geração, Roberto, Erasmo e todo mundo. Depois vieram os mais regionais, a música do Nordeste, os cearenses, os gaúchos, enfim. Mais recentemente, tudo que se caracterizou pelo nome de sertanejo. É muita coisa. Nós, de uma certa forma, pertencemos a esse vasto campo de manifestação.
P E vai passando adiante. Por exemplo, estás no palco com a família junto, tem a Nara, o João, o Bem nessa turnê. Como é a emoção de dividir essa turnê com eles? Vocês recentemente também fizeram uma turnê maior, com mais músicos da família…
R Os meninos cresceram em um ambiente saturado de música, de afeto cultural, de afeição pela cultura popular. São meninos que cresceram numa casa frequentada por tanta gente, por tantos artistas, tantos criadores. Ficaram também impregnados por esse gosto, e alguns deles se dedicaram a uma vida profissional com música. É o caso dos que você citou, que estão comigo, que me acompanham agora nesse trabalho, e outros como a Preta, que por força da questão de saúde não pode propriamente estar presente, mas que está aí com seu trabalho, com seu legado e tudo mais.
P Esse afeto pela cultura que está no seio da tua família, trazes para o Brasil. E a gente pode dizer que és um intelectual que foi para a linha de frente de ação. Tanto que foste para o Ministério da Cultura, sempre estiveste muito presente no debate nacional sobre cultura. Agora, na Academia Brasileira de Letras, isso continua. Queria que falasses dessa importância da cultura como elemento transformador.
R A vida cultural através da manifestações de expressões de várias linguagens, e tudo isso que a gente considera como cultura, isso é a própria força da expressividade de um povo. Sua música, seu teatro, seu cinema, suas artes plásticas, suas manifestações artesanais, todas elas, regionais, a cultura manifestada pelos povos originários, tudo isso é importante para a formação de uma identidade. Ou, no caso, de um conjunto das identidades brasileiras. Pertencer a este campo, do ponto de vista pessoal, individual, é um orgulho, um prazer, um presente extraordinário que a vida me dá. Eu tenho um orgulho imenso de fazer parte desse conjunto de manifestações da vida cultural brasileira. E no fundo isso é a representação do espírito nacional, as falas, o modo de falar genérico do povo se dá através das linguagens que formam esse mundo cultural. Isso é fundamental. O Brasil tem, em particular, no mundo, uma riqueza muito grande neste campo.
P Algum recado específico para os fãs paraenses que estão te aguardando?
R Um beijo enorme, um convite amplo para que estejam, na medida do possível, conosco nesse show que vamos fazer em Belém, que vai repetir uma caminhada já feita em vários outros lugares do Brasil. Belém tem uma importância muito grande para mim, por tudo, por todos os grandes momentos vividos aí em várias ocasiões. É mais uma ocasião de encontrar o povo de Belém do Pará e daí das imediações. É um prazer enorme. Um abraço, que eu mando a todos, e um convite extenso que faço a todos para que estejamos juntos.