GUSTAVO ZEITEL
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É possível acompanhar a passagem do tempo pela cor do cabelo de Reynaldo Gianecchini, de 50 anos. Os suplementos dominicais parecem ter um espaço reservado para comentar o novo corte do ator, elevando, assim, a questão estética ao estatuto de uma crise existencial. “Todo mundo quer saber do meu cabelo, sendo que minha vaidade é normal nem levo minha imagem a sério. Quero desconstruir essa fama de galã”, diz ele.
Aos desavisados, Gianecchini já deixou de assumir os tons grisalhos. Com barba e cabelo pretos, ele encarna outro arquétipo masculino, estreando, nesta quinta-feira (9), a peça “A Herança”, do americano Matthew López, no Teatro Vivo. Gianecchini interpreta Henry, par romântico de Eric, papel de Bruno Fagundes, de 33 anos, filho dos atores Bruno Fagundes e Mara Carvalho.
No elenco, 11 atores, entre eles André Torquato e Felipe Hintze, se desdobram em 25 personagens, numa peça de cinco horas e meia dirigida por Zé Henrique de Paula. Exigindo fôlego ao público, o texto é dividido em duas partes de duas horas e meia, cada uma subdividida em atos, delimitados por intervalos, mais um elemento para aumentar o frisson que a peça tem causado na cidade desde que foi anunciada.
Já são mais de 3.000 ingressos vendidos, o equivalente a dez apresentações lotadas. Para a segunda parte, que só será encenada no fim do mês, 950 entradas foram adquiridas -ou seja, quase mil pessoas, mesmo desconhecendo a história, reafirmaram a curiosidade pelo desenrolar da trama.
Na Broadway, onde estreou em 2019 depois de uma temporada em Londres, o texto causou histeria similar, tendo sido um fenômeno de público e crítica. O jornal britânico The Daily Telegraph disse que “A Herança” é a peça mais importante dos Estados Unidos no século 21. Em 2020, a obra de López havia arrematado quatro prêmios Tony, o mais importante do teatro, incluindo a categoria de melhor drama.
“É um épico gay com um texto lírico, em que a plateia é convocada a interagir com a sucessão de acontecimentos”, afirma Fagundes, que assistiu à montagem na Broadway e resolveu trazer a obra ao Brasil com a tradução de De Paula. O ator trata a encenação de cinco horas e meia como um ato político, senão revolucionário, num contexto em que o olhar do público se dispersa nas telas dos celulares.
A extensão da saga criada por López evita qualquer tentativa de resumo, com a sobreposição de temas e personagens que aparecem uma só vez e logo desaparecem. Em linhas gerais, Eric é um jovem ativista do Partido Democrata apaixonado por Henry, eleitor do Partido Republicano. Ou, nas palavras de Gianecchini, “um bolsominion gay”, que atrapalha a luta coletiva por igualdade.
Henry é milionário e vive com Walter, interpretado por Marco Antônio Pâmio, numa mansão, que se torna o local mais importante da história. Já Eric busca a todo custo a ascensão social em seus relacionamentos. São dois homens gays em contextos sociais distintos e com visões de mundo conflitantes.
A criação de López reflete a passagem do tempo, traçando um panorama de gerações da comunidade gay de Nova York desde a epidemia de Aids nos anos 1980 até a diversidade que a estrutura na atualidade.
Eric e Henry são nomes de personagens do romance “Retorno a Howards Ends”, escrito em 1910 por E.M Forster, que tematiza a luta de classes da Inglaterra na história de três famílias distintas. Em “A Herança”, a Inglaterra foi trocada pelos Estados Unidos, e a luta de classes, pelas questões de gênero e sexualidade.
Às 16h30 de terça-feira passada, o elenco se reuniu no teatro para um dos últimos ensaios antes da estreia. Da plateia, De Paula orientava os detalhes de posicionamento do último ato da primeira parte da peça.
Todos estavam sentados no chão e, pouco a pouco, se levantavam, indo à dianteira do proscênio. Então, cada um dava notícias da epidemia de Aids, ao som do tema principal de “Pavana Para Uma Infanta Morta”, composição de 1899 do francês Maurice Ravel.
Patrick e Alex morreram, Charles se infectou, Miguel estava morrendo, novos enterros foram marcados e um amigo em comum viajara para morrer na casa dos pais. Um personagem falava de boatos sobre o encarceramento de gays. Outro relatava o aumento da violência contra homossexuais nos Estados Unidos.
No cenário, toda a estrutura do teatro é aparente, com cabos, fios, placas de madeiras e até um bebedouro, que emula uma sala de ensaios. Num acabamento elegante, a iluminação de Fran Barros preenche os espaços vazios da estrutura aparente.
A indeterminação cênica é a um só tempo uma reverência a força da contação de histórias e uma solução para a impossibilidade de transpor a trama para uma cidade brasileira. O diretor vetou as adaptações propostas no texto, que substituiriam Nova York por São Paulo.
A cena une dois vetores do texto escrito por López –a agilidade, na decomposição de falas curtas na boca de cada personagem, e a dramaticidade. “A Herança”, afinal, é também uma peça barra pesada. Para entender tudo o que se passou, Gianecchini conta ter feito uma pesquisa em livros, séries e filmes sobre a epidemia.
“Essa peça mexeu muito comigo, porque o personagem toca na minha questão e tinha receio de entrar nesse mundo. Agora entendi por que os gays precisam se agrupar para lutar pela existência”, diz Gianecchini.
“Não me interessava por bar e night gay, com aqueles caras sem camisa, não me sentia à vontade de estar ali. Agora, essa peça me deu muito amor por todas essas pessoas. Só não frequento os lugares porque não tenho tempo, né, amor? Ensaio que nem um maluco.”
Desde sua concepção, a peça tem tinturas autobiográficas. López, o diretor, é agora o queridinho da Broadway, tendo escrito para o cinema e feito sucesso com as peças “The Whipping Man”, de 2009, e “Somewhere”, de 2014.
Mas, na juventude, ele sofreu todas as angústias de ser gay e latino, lidando com as reverberações da epidemia de Aids. De modo análogo, a história gerou um sentimento de identificação nos atores, com semelhanças e diferenças.
Ator já disse que teve romances com homens e mulheres
Em 2019, Gianecchini declarou à imprensa ter tido romances com homens e mulheres, refutando qualquer tipo de classificação. Ele conta não saber o que ocasionou a decisão de expor a sua vida privada. Pensa ter tido, enfim, a maturidade necessária para falar sobre o tema. Durante boa parte da vida, diz não ter olhado com generosidade para os próprios desejos. Agora, indica uma sexualidade fluida e livre de amarras.
“A fluidez incomoda as pessoas, porque vivemos num país de pessoas muito reprimidas e, quando se é reprimido, a sexualidade alheia te causa frisson. A liberdade do outro mexe com você”, afirma. Não foi sem angústia, porém, que o ator encontrou a resolução de seu desejo.
Desde que trocou as passarelas pelos palcos, conviveu com as especulações da mídia sobre sua sexualidade, o que não já não o incomoda tanto como outrora. “Li na imprensa mais fofocas mentirosas do que verdadeiras sobre a minha vida privada”, ele conta. “Eu me incomodava muito, chegava a ter sensações físicas, sentia calafrios e um peso na nuca, como se algo estivesse me oprimindo.”
Para Gianecchini, a liberdade é também regra para a vida profissional. Com o fim de seu contrato com a Globo em 2020, ele busca novos formatos e tipos de personagens. “Passei 22 anos fazendo novelas, trabalhando o ano todo que nem um louco. Nunca me chamaram para fazer uma série. Quero possibilidades novas.”
Como no choque de gerações de “A Herança”, o tratamento dado à sexualidade dos atores mudou até os anos mais recentes, quando Fagundes despontou nos palcos e na TV. Gianecchini diz que, no começo da carreira, a orientação sexual da vida real tinha relação estreita com os papéis assumidos na ficção.
Aos pais, Fagundes se disse gay aos 15 anos. Há dois meses, ele assumiu publicamente o namoro com o ator Igor Fernandez, em quem aparecia dando um beijo na bochecha, numa foto que se espalhou nas redes sociais. “O tempo inteiro era invadido, com matérias que tentavam me tirar do armário toda semana. Agentes, empresários e diretores me aconselhavam a esconder a minha sexualidade. Era uma angústia absurda”, ele diz.
Na escola, sofreu bullying por ser filho de pais famosos e, até pouco tempo, tinha dificuldades para se assumir como ator diante do talento de Antonio Fagundes. “Fui apertando o ‘foda-se’ para as pessoas, quem cuida da minha vida sou eu.”
Fagundes diz achar a polêmica dos “nepo babies”, filhos de famosos que também ingressam no mercado de celebridades, uma crueldade. “Nada mais natural que um filho se inserir no mercado em que os pais têm uma entrada, mas eu nunca recebi convite para fazer novela por ser filho de quem eu sou.”
“Quando alugo um teatro, tenho que vender ingresso. E estou vendendo ingresso. As pessoas querem me assistir. Não sou celebridade. Sou artista.”
A HERANÇA
Quando a partir de 9/3. Quin. a sáb. 20h; dom. 18h
Onde Teatro Vivo – av. Doutor Chucri Zaidan, 2460, Morumbi, São Paulo
Preço De R$ 25 a R$ 100Classificação 18 anosAutor Matthew López
Elenco Bruno Fagundes, Reynaldo Gianecchini, Marco Antônio Pâmio, Rafael Primot, André Torquato, Felipe Hintze, Davi Tápias, Haroldo Miklos, Cleomácio Inácio, Wallace Mendes, Gabriel Lodi, Rafael Américo, Miriam Mehler
Produção Carlos Martin
Direção Zé Henrique de Paula