Em meio ao clima de confraternização e festejo que toma conta de Belém à medida que se aproxima o segundo domingo de outubro, a cidade vê efervescer também manifestações culturais e artísticas, algumas delas tão tradicionais que detém o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.
Além do mar de gente que toma as ruas durante as procissões que integram a festividade em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré, o Círio também é sinônimo de arte e cultura nas ruas de Belém.
Desde 1978, a noite do sábado que antecede a procissão do Círio de Nazaré dá lugar à diversidade e à representatividade da Festa da Chiquita. Logo após o encerramento da trasladação, em frente ao Bar do Parque, na Praça da República, a manifestação artística que há 20 anos detém o título de Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil resiste ao tempo, ainda que tenha tido que enfrentar resistências ao longo dos anos.
Coordenador geral da Festa da Chiquita, Eloi Iglesias conta que a manifestação iniciou em um período muito difícil da história do país. “A Festa da Chiquita começa em um momento difícil porque foi na época da Ditadura Militar, na época em que dois padres que defendiam os camponeses tinham ido presos e a gente tentou fazer um tipo de protesto, com um pouco de humor, algo com um ato de excluídos”, lembra, ao contar que com o tempo a festa foi ganhando grande proporção. “Começa nisso e acaba que ela pega um outro corpo, né? As pessoas começaram a brincar de diretoria e a festa começa com esse clima de protesto, humor e amor também”.
PENSAMENTOS
À medida que as edições iam passando, a festa começou a agregar cada vez mais pessoas que tinham pensamentos comuns e que comungavam dos mesmos princípios. “Eram pessoas que pensavam contra a ditadura, que pensavam na liberdade, artistas, LGBTs, universitários, jornalistas, formadores de opinião que se encontraram ali e começaram a criar um movimento de resistência sem saber que estavam fazendo política, que se estava fazendo resistência. Era uma era um misto de protesto e carnaval”.
Resistindo a qualquer crítica ou tentativa de abafamento, a manifestação cultural se consolidou e faz parte da tradição ligada ao período de realização do Círio. Entre as duas maiores procissões da festividade de Nazaré, a festa envolve música, premiações a figuras ilustres da comunidade LGBTQIAP+ e participação de artistas diversos.
Em 2024, quando o Círio de Nazaré foi incluído no Livro de Celebrações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Festa da Chiquita também fez parte do reconhecimento. “O reconhecimento como Patrimônio Cultural representa a garantia dos nossos espaços como cidadãos, com direito a tudo que a sociedade permite a todos os seres humanos: saúde, educação, amor. É isso que representa e é por isso que todo ser humano luta”, avalia Eloi Iglesias.
Também manifestada nas ruas da cidade, as mesmas que recebem os fiéis nas procissões, o Arrastão do Arraial do Pavulagem também guarda uma relação de longa data com o Círio de Nazaré. Há 22 anos, o folguedo de rua criado para ganhar vida no mês de julho encontrou um propósito para sair também no mês de outubro.
“O primeiro projeto que nós temos é o arrastão de junho, que foi como tudo começou. E a partir do momento em que a gente se consolidou na rua, nós procuramos levar a manifestação para os momentos em que a cidade estava mais efervescente, onde tinham os picos de cultura e claro que o Círio é um momento que tem essa efervescência cultural e a presença de Nossa Senhora de Nazaré, que é a nossa mãe, nossa padroeira”, lembra Júnior Soares, um dos fundadores do Grupo Arraial do Pavulagem.
“Então, há 22 anos nós tomamos essa decisão de levá-lo também para o âmbito do Círio como uma forma de homenagear, claro, Nossa Senhora de Nazaré, mas também como uma forma de trazer para esse conjunto de ofertas de cultura que se faz na cidade, um folguedo de rua, o que naquele momento não existia”.
Dentro da grande quantidade de eventos religiosos que ocorrem durante o período do Círio, Júnior conta que o Arraial conseguiu encontrar um espaço para acontecer no sábado que antecede a grande procissão. “O único momento que nós conseguimos que pudesse ter uma proximidade com a Imagem e com esse momento mais religioso foi exatamente na chegada da procissão fluvial, antes dela engatar na motorromaria. Nós solicitamos, inclusive, para a Igreja esse momento de homenagem e foi esse o momento que nós encontramos”.
Atualmente, a concentração do Arrastão é marcada por uma roda cantada, uma roda ancestral onde o grupo busca trazer elementos da cultura indígena, da cultura negra e da cultura portuguesa. “Nós criamos uma performance chamada Roda Ancestral e tudo isso acontece antes da chegada da Santa. E nesses 22 anos nós saímos de um público muito pequeno para quase 15 mil pessoas na concentração. Esse ano a gente espera em torno de 30 mil pessoas”, estima Júnior Soares.
“É o nosso momento de homenagem. A gente homenageia Nossa Senhora e sai com o cortejo, com o Arrastão do Pavulagem que todo mundo conhece, mas não trabalhando com o boi bumbá e sim trazendo o miriti para ficar mais próximo dos símbolos do Círio. É como se o Círio Fluvial desembarcasse em um mar da rua, de pessoas. É um folguedo popular baseado nos ritmos locais e repertórios ligados ao Círio”.