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Era uma vez um Natal...

O escritor Salomão Larêdo ainda lembra dos natais na Vila do Carmo, em Cametá, cheios de atividades lúdicas, como a montagem dos presépios. Foto: Celso Rodrigues/ Diário do Pará.
O escritor Salomão Larêdo ainda lembra dos natais na Vila do Carmo, em Cametá, cheios de atividades lúdicas, como a montagem dos presépios. Foto: Celso Rodrigues/ Diário do Pará.

Tylon Maués

Em via de regra, a noite de Natal tem muitas características em comum, a despeito de religião ou da ausência de credo. Jantar em família, rezas ou não, bebida e comida, presentes e confraternização. Geralmente são reminiscências que carregamos para o resto da vida. Quando essas lembranças vêm daqueles encarregados de fazer arte para expressar seus sentimentos, fica a curiosidade como essas pessoas que contribuem com a nossa cultura passaram pelas datas marcantes de suas vidas, como o Natal.

Ionete da Silveira Gama, Dona Onete, nasceu em Cachoeira do Arari, no arquipélago do Marajó, mas costumava passar os natais na casa da avó Raimunda, na Travessa Vileta, no bairro da Pedreira. Há quase oito décadas, o mundo era outro, os costumes idem. “O Natal era diferente. Nessa época, poucas pessoas conseguiam ter árvore de Natal. A gente era muito humilde, então a gente pensava mais no Papai Noel e fazia a cartinha com nossos pedidos. Quando alguém tinha árvore, a gente ia ver”, lembra a cantora hoje reverenciada como uma das maiores artistas de nosso estado.

Ionete da Silveira Gama, Dona Onete, nasceu em Cachoeira do Arari, no arquipélago do Marajó, mas costumava passar os natais na casa da avó Raimunda, na Travessa Vileta, no bairro da Pedreira

Dona Onete tem nítido na memória o trabalho de um vizinho que fazia uma árvore de Natal nos galhos de uma mangueira, pendurando sacolinhas com bombons e cobrindo a árvore de algodão. “Eu e meus primos nos arrumávamos cedo e íamos lá pegar os doces para depois ir na Missa do Galo. Quando amanhecia, tinha sempre um presente embaixo das nossas redes, e a gente ia brincar na rua com os nossos presentes. Era um Natal de família pobre, mas um Natal muito feliz”, relembra.

As festas de Natal ficaram marcadas pelas árvores e pela perda da mãe, falecida num dia 22 de dezembro. “Já passei muitos natais felizes com meus filhos, netos e bisnetos. Mas eu nunca esqueço da minha mãe e sempre faço orações por ela”.

A também cantora Nazaré Pereira, acreana de nascimento, paraense por adoção e parisiense pelos caminhos da vida, há alguns anos, também tem lembranças muito ligadas à mãe. Maria, imortalizada na letra de “Xapuri do Amazonas”, era, nas palavras de Nazaré, quem organizava os festejos quando vieram para a capital paraense.

A também cantora Nazaré Pereira, acreana de nascimento, paraense por adoção e parisiense pelos caminhos da vida, há alguns anos, também tem lembranças muito ligadas à mãe

“Quando vim para Belém, com sete anos, comecei a curtir mais os natais. Era muito bonito, as pessoas se comunicavam muito mais. Os natais passaram a ser muito bonitos, com muita árvore e muitas frutas. Hoje moro na Europa, mas sempre venho passar o Natal em Belém. Mas, minha mãe morreu há quatro anos e ela era a referência das festas, então eu venho com aquele aperto no coração”.

A infância na zona rural de Xapuri podia até ter traços idílicos, mas era difícil e humilde também. “Minha infância foi meio complicada. Eu nasci em Xapuri, no Acre. A gente morava no meio da floresta. Nosso Natal era só rezar, então era difícil para uma criança. Mamãe era muito católica e ela fazia aquelas coisas de Natal, na base de orações, aquelas coisas todas. Pegava uma árvore do quintal e botava umas fitas coloridas. Mas, não tínhamos condições de fazer muita coisa, não. Foi depois que eu vim para Belém que eu comecei a conhecer o Natal”, lembra Nazaré.

A ausência de recursos não era novidade para o pequeno Salomão Larêdo. O escritor cametaense e seus irmãos e primos contavam com a criatividade da avó para festejar o nascimento de Jesus.

“Na Vila do Carmo, em Cametá, onde nasci, tudo era muito modesto e o Natal em nossa comunidade era bem humilde. Minha avó materna, Ana Gonzaga, afro-descendente, líder comunitária, levava os netos para o campo de onde trazíamos areia branca, folhas, pedras e outros materiais para montar presépio na capela da igreja”, conta Salomão, com as lembranças que o ajudaram a tecer suas histórias na vida adulta. “Fazer o presépio era uma enorme alegria. Depois rezávamos, cantávamos, fazíamos teatrinho contando a história do nascimento de Jesus. Depois, cânticos, e dormir para abrir os presentes pela manhã”.

 

Tempo de reunião e pequenos regalos

O cantor e compositor Ronaldo Silva é de Belém. Quando criança, morava na Visconde de Souza Franco, mas a “Doca” de então resguardava características que ficaram no passado. A Vila São Jorge onde o artista viveu já nem existe mais, engolida pela área de supermercado no local. A lembrança principal que restou foram os sons e as imagens que a época trazia. “O que eu nunca esqueço era que o meu pai montava árvore de Natal e o presépio. Era superlegal, com luz, aquela cena do nascimento de Jesus. Isso é que eu guardo dos natais da minha infância”.

O cantor e compositor Ronaldo Silva é de Belém. Quando criança, morava na Visconde de Souza Franco, mas a “Doca” de então resguardava características que ficaram no passado.

Ronaldo se recorda que na época, tal qual uma cidade do interior, sua vizinhança era uma baixada, sem asfalto, com pontes e estivas, “como se a gente morasse no meio do mato, com umas trilhas, não tinha rua”, conta. Segundo ele, isso fazia com que as pessoas se aproximassem, estreitando os laços entre os vizinhos, com um sentimento de fraternidade e ajuda bem maiores.

“Nesses momentos de festa, eu me lembro muito bem disso, porque as pessoas moravam numa vila e os vizinhos iam para a porta, a gente ganhava o brinquedo, ia brincar na rua, mostrar o brinquedo”.

O jornalista, radialista e escritor Edgar Augusto, colunista do Você, passava o Natal ao lado dos pais, o radialista Edyr Proença e a professora Celeste Proença, e mais quatro irmãos. “Mamãe nos levava à Missa do Galo, à meia-noite, na igreja de Sant’Ana. Depois, dormíamos cedo, e no dia seguinte despertávamos para abrir os presentes. Era uma festa. Não tinha TV, nem celulares. Era uma época toalmente diferente de hoje”, lembra. “O Natal era calmo, familiar, numa Belém conservadora e sem barulhos noturnos. A gente sonhava um ano esperando as comemorações, os presentes”.

O jornalista, radialista e escritor Edgar Augusto, colunista do Você, passava o Natal ao lado dos pais, o radialista Edyr Proença e a professora Celeste Proença, e mais quatro irmãos.

Os natais da infância de Edgar podiam até ser calmos, mas ele vem de uma família “barulhenta”. Seu avô Edgard Proença fundou a PRC-5 (Rádio Clube do Pará), que foi a primeira rádio do estado e a quarta do país. O pai, Edyr Proença, até hoje é considerado o mais importante locutor esportivo do Pará. O próprio Edgar chegou a ser narrador de futebol, mas a música sempre foi uma paixão avassaladora. Ele comandou por 50 anos o programa “Feira do Som”, a maior parte do tempo na rádio Cultura FM, onde permanece apresentando o programa “Raridades da MPB” .

Uma das lembranças que Edgar guarda do Natal é dessas de ser criança, esperando por um presente. “Quando menino, jogando futebol na Praça da República, sonhava em ganhar uma chuteira de verdade. Mamãe passou um mês dizendo que eu devia receber de Papai Noel um sapato social bonito para ir à missa e às festas. Fiquei tenso, não queria”, recorda Edgar Augusto. Foram dias de tensão até a manhã do dia 25.

“No dia de Natal, debaixo da árvore, lá estava o embrulho com o tal sapato. Nem sequer o abri, temendo que fosse o tal sapato de gente grande. Quando já chorava de desgosto, papai abriu o embrulho e lá estava a chuteira marca Gaeta, a mesma utilizada pelos jogadores do Botafogo”, diz ele, citando o time do coração desde a infância. “Meu choro se transformou rapidamente em risos alegres e o Natal foi só alegria”, lembra.

Os presentes natalinos podiam ser coisas prosaicas, mas o sentimento da data e a surpresa geralmente traziam um encantamento típico do período. “Recordo que num Natal encontrei debaixo da minha rede, ao acordar, uma garrafa de guaraná natural, feito num engenho de Igarapé-Miri. Uma delícia, com uma garrafa com uma fita colorida com uma estampa de santo. Era dia de Natal e então bebia aquele gostoso guaraná, contente e feliz”, lembra Salomão Larêdo, com o sabor da infância saltando da memória.

Dona Onete lembra de quando ganhou uma boneca negra e ficou uma fera com Papai Noel, para depois ter descortinados diante de si sentimentos novos. De um estranhamento inicial à alegria e até ciúme do novo regalo. “Eu ainda não entendia dessas coisas da vida, eu era uma criança, tinha ali pelos 8 ou 10 anos. Quando eu saí pra rua, todo mundo que olhava achava ela linda, e ela virou a preferida porque tinha uma boca vermelha, e todo mundo queria minha boneca. Aí, fiquei enciumada. Foi um dos meus melhores natais do meu tempo de criança”.

Nem sempre a lembrança é de um presente em si, o que não muda em nada o sorriso que surge quando essas imagens vêm à mente. Depois de uma infância pautada pela austeridade, Nazaré Pereira começou a cantar bem cedo e, com isso, começou a ganhar seu dinheiro. Com isso, o Natal passou a ser também sinônimo de celebração à amizade, à vida, à felicidade e tudo o mais que a data traz como sinônimo.

“Depois que eu comecei a trabalhar, a ter um pouquinho de possibilidades, eu reunia a família e fazia aquelas festas. Eu fazia grandes festas de Natal e são essas recordações que eu tenho”, lembra a cantora.

Já para Ronaldo Silva, essas lembranças passam por todo o processo dos brinquedos, desde suas feituras até o compartilhamento nas brincadeiras de rua. Mais do que nunca, o sentimento de pertencimento a um local se mostrava nesses dias. “Eu tenho muitas lembranças ligadas à alegria de receber meus avós nesses períodos de Natal. Mas, o que mais me reporta ao Natal é o lance dos brinquedos. Eu sempre gostei muito de brinquedos. E eu tenho lembranças de algumas crianças que os pais faziam os brinquedos de lata, de madeira. O Natal, para mim, sempre foi um momento de tranquilidade, um momento muito íntimo, de família, de meu vizinho”.