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Entre a cena e a clínica: Bastidores do teatro

Belém, Pará, Brasil. Momo, espetáculo autobiográfico de Alberto Silva Neto. Casa dos Palhaços. 14/04/2024. Foto: Octavio Cardoso
Belém, Pará, Brasil. Momo, espetáculo autobiográfico de Alberto Silva Neto. Casa dos Palhaços. 14/04/2024. Foto: Octavio Cardoso

 

Por Valéria Andrade

Concebido há um ano, o espetáculo solo autobiográfico “Momo”, de Alberto Silva Neto, está em nova temporada na Casa dos Palhaços. No segundo semestre, vai circular por Manaus (AM), Campo Grande (MT) e São Paulo (SP), pelo projeto “Escambo – Rede Parente”, da Cia Cisco (SP). O objetivo é promover o intercâmbio entre coletivos de teatro de três regiões brasileiras, com apresentações de espetáculos, oficinas e mesas públicas.

“Momo” foi criado a partir de cartas trocadas entre o pai e o avô do artista, na década de 1960, e do texto que Alberto escreveu pela morte do pai, em 2007. Isso foi o disparador para as sessões na Clínicas do Sensível, projeto onde a atriz, encenadora e pesquisadora Wlad Lima realiza práticas psicopoéticas diversas, aproximando arte e estudos da psique.

Para refletir com Alberto e Wlad sobre essa experiência, o Você convidou a atriz, professora e pesquisadora da cena paraense contemporânea, Valéria Andrade. Ela é autora da tese “Poéticas do afeto no teatro de grupo – Trânsitos e alianças entre os criadores no teatro de Belém do Pará (1976-2016)”, a ser lançada em livro, em breve. Confira os principais trechos da conversa a seguir.

Valéria Andrade – Quero agradecer por esse momento. Alberto, qual foi o impulso primordial para criação de “Momo”, que consideras um ato de sinceridade?

Alberto Silva Neto – Foi uma condição de saúde em que me vi, um ano atrás. Algo muito íntimo. Então voltei à relação com meu pai, Eduardo. Lembrei das cartas trocadas entre ele e meu avô, Alberto, que guardava há 17 anos. E procurei pela Wlad. Sinto ter buscado um lugar de afeto, uma escuta sensível. A Wlad, de todos os meus amigos do teatro, foi a única pessoa presente no velório do meu pai. Aí no primeiro encontro apresentei não apenas as cartas, mas o texto que escrevi naquela ocasião, e uma carta minha, elaborada com fragmentos de vários escritores. Então, já cheguei com uma estrutura dramatúrgica. Aí a Wlad passou a interagir comigo e “Momo” foi se tornando o que é: uma encenação.

V.A.– Wlad, como isso se aliou ao conceito de dramaturgia pessoal do ator, que você sistematizou no seu mestrado, e usa a vida dos atuantes como fonte da atuação?

Wlad Lima – O Alberto chega trazendo uma substância dessa linha da dramaturgia pessoal que pratiquei, após mestrado e doutorado. No lugar das histórias de vida serem um material que está por baixo da dramaturgia, eu coloquei na frente. Então, o que ele me mostrou é o que desenvolvo há décadas, e sistematizei na minha tese “O teatro ao alcance do tato”. Falo de proximidade, cuidado. Porque o tato, mais do que a distância da mão, é cuidado com o outro. Tanto aquele que faz quanto o que está sendo agenciado, o espectador. Fomos dilatando e olhei também como encenadora. Isso é um aspecto poético. Mas, gostaria de abrir uma fenda para o psicopoético. Eu sou amiga do Alberto há anos, e essa crise não se instalou agora, com esse diagnóstico. Está aí faz tempo. Não afetou o encenador e o professor, mas o atuante sim, função em que o Alberto precisava ativar o corpo, e não conseguia. Pelo menos sozinho, não. Então acionamos a clínica.

V.A.– Diferentemente da maioria dos processos, “Momo” não teve ensaios, mas foi gestado por meio do acompanhamento psicopoético. Como foi essa experiência?

A.S.N.– Eu logo percebi que nossos encontros me estimulavam na direção de um modo de abordagem do teatro e de atuação que me interessava, mais ligado ao performativo, à construção dessa presença. Falo de potencializar o instante vivo pela dimensão do relato de vida, mesmo. Então, o processo foi recusando a necessidade de um processo afeito a um formato mais tradicional de construção da cena. Eu nunca ensaiei o “Momo” durante todo esse primeiro ano. Os modos como me aproximo do ato, na véspera de fazê-lo, são outros. Por exemplo, no processo clínico inicial, eu desenhava. Também me relaciono muito com as canções usadas no espetáculo. Mas, nunca elaborando algo para produzir determinado resultado cênico. Ao me colocar desarmado, percebo a força que isso tem.

W.L.– Todo um campo sensorial, né? De sensação, de intuição.

A.S.N.– E quanto ao ato de sinceridade, se estabelece melhor quanto mais me aproximo do Alberto. Percebi que não deveria ficcionalizar de nenhuma forma a minha atitude com as testemunhas, construindo uma atmosfera pra cena. Procuro agir da forma mais espontânea e sem disfarce possível. Isso é curioso, porque é paradoxal em relação à ideia de teatro no senso comum, que é a de se afastar de si para representar um outro.

V.A.– E por que chamar o espectador de testemunha?

W.L.– Uma coisa que eu gosto é que você compromete o outro. Juridicamente não é assim, quando tu és testemunha de um crime? Quando eu chamo o outro de testemunha, estou falando de algo muito mais profundo do que ser apenas um espectador de teatro.

A.S.N.– E a encenação também constroi o espaço para que isso aconteça, a partir da forma unitária proposta por Jerzy Grotowski, que cria uma chave espacial capaz de determinar ao espectador uma função ativa. No caso, um familiar no velório. O resultado lembra a teoria da Wlad de que cada testemunha faz sua clínica. Temos presenciado, depois das sessões, as pessoas falarem muito de suas próprias vivências com o pai, com a morte.

W.L.– É também um tema que eu gosto porque é o homem falando da paternidade.

A.S.N.– E como essa ancestralidade masculina reverbera numa testemunha mulher. Quando é mãe, o processo dela passa a ser não apenas com o pai dela, mas com o pai dos filhos.

V.A-É verdade. Ao assistir, pensei no pai do meu filho, não só na morte do meu pai.

A.S.N.– Em Santarém, no II Festival de Solos do Pará, pai e filho vieram juntos falar comigo ao final, abraçados, se beijando e chorando. Nunca tinha vivido nada parecido.

W.L.– Tivemos também a experiência com o Pedro, filho do Alberto. Ele chegou no porão bem e entrou numa crise de alergia terrível. Só faltou morrer. Acabou o trabalho e ele foi embora correndo. Porque é o pai dele que está ali, o avô, o bisavô. É muita coisa.

A.S.N.– É lindo me ver nesse lugar privilegiado do processo clínico conduzido pela Wlad.

W.L.– O que eu faço com muita gente, mas em especial contigo, é isso: “bora, Alberto, fazer?”. Porque às vezes a gente está necessitadíssimo de alguém que pegue na nossa mão. Não é que eu deixe de fazer porque eu não tenho tempo, mas porque é doloroso, não sei lidar com isso, mas quero fazer. Eu acho o teu trabalho clínico delicadíssimo. Tu chegas com “que achas de eu fazer?” e eu digo “vamos”. Então, estás tendo alguém no teu mundo pra te ouvir. Acho que todo mundo está precisando. Eu estou precisando muito.

A.S.N.– A gente tem uma cumplicidade. Ela não assiste às sessões de “Momo”. No entanto, todo dia de fazer, eu escrevo pra ela, logo cedo, “Bom dia, hoje é dia de Albertinho!”.

W.L.– A gente troca quase todos os dias, mas nos dias de espetáculo eu fico mais atenta.

A.S.N.– E após cada sessão, eu sempre faço um relato detalhado da experiência que tive.

W.L.– Você fica acompanhado, né? E nas clínicas, isso se estende a praticamente todo mundo, sabe? O meu trabalho de acompanhamento para além das sessões é imenso.

V.A.–Qual o papel das cartas e do texto escrito como despedida para o pai?

A.S.N.– São catalisadores da matéria que vai ser experimentada no corpo, em estado de atuação. Ler em ato esses textos provoca alguma coisa em mim que ainda estou tentandoprocessar. E também disparam a dramaturgia, que parte da minha relação com meu pai.

W.L.– Vieste e disseste “quero trabalhar com isso na cena”. Ser o pivô de criação, né?

A.S.N.– E um dia disseste que a cena era a minha carta. Inclusive, tenho pensado sobre elas numa perspectiva curiosa: meu avô, pela retidão ética austera, seria apolíneo, e meu pai, hedonista e perdulário, dionisíaco. Talvez aí esteja a sede do sentido trágico de “Momo”.

W.L.– E é uma exigência do contemporâneo, não é? Eu já li vários autores dizendo que talvez a recuperação do trágico na arte seja a escapatória para essa banalidade que a arte promove hoje. Eu gosto da ideia. É um equilíbrio. Tu não estás negando nada, estás passeando no entre, né? Tu estás passando no meio dos dois. E tem uma questão clínica aí. O Alberto é apolíneo e dionisíaco. Porque é tão arrumadinho, tão impecável, tão… mas também tem as loucuras dele que afetam, destroem com algumas realidades.

V.A.–Alberto, tem uma coisa no depoimento das testemunhas que é o teu ato de coragem. Essa coragem que é se olhar e, depois, deixar que os outros vejam.

A.S.N.– É minha tentativa de me reconhecer. E talvez me reconciliar comigo, abrindo portas para a reconciliação com o outro. E isso passa pelo atravessamento entre arte e vida que “Momo” propõe. Inclusive na forma metalinguística que convoca textos de Antonin Artaud, para quem “a tragédia em cena já não basta”. Nós assumimos esse desejo.

W.L.– Sobre esse jogo entre ficção e realidade, eu acho muito difícil a gente se mobilizar hoje por algo que seja totalmente apartado de nós. Isso aí já foi. Tudo o que a gente quer colocar no mundo tem uma dimensão de diálogo com a realidade. Então, é o ficcional conversando com a realidade, atravessado pela realidade. É isso que tento buscar. Mas, fazer isso só no palco não basta. Temos que fazer na vida. Tem que escorrer na vida, porque o teatro não é suficiente. Não é. Venho falando isso há pelo menos uma década.

V.A.–E o que virá, a partir de agora?

A.S.N.–“Momo” segue sua trajetória. E conversamos sobre fazer nova criação, via clínica.

W.L.–0 Tenho muita sede de ver o Alberto experimentar o Lombo da Cobra, uma sessão de quatro horas. É uma prática totalmente decolonial, sem psicanálise, esquizoanálise, nada disso. Inaugurar um novo ciclo, de algumas sessões, e daí resultar algo que vá a público.