Wal Sarges
As composições de Dona Ivone Lara (1921-2018), conhecida como a Dama do Samba, remetem à esperança, à alegria e a tantos adjetivos que materializam o ritmo e nos tornam próximos dele. Ela, que nasceu no berço do samba, em 13 de abril de 1921, no Rio de Janeiro, foi compositora, cantora e instrumentista. Em homenagem à artista, o Dia Nacional da Mulher Sambista foi instituído na data de seu nascimento. A Lei de nº 14.834 foi sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e publicada na última sexta-feira, 5, no Diário Oficial da União.
“Sonho Meu”, uma das mais famosas canções da carioca, composta em parceria com Délcio Carvalho, foi regravada por dezenas de nomes, como Maria Bethânia, Caetano Veloso, Zeca Pagodinho, Diogo Nogueira e Adriana Calcanhoto. Entre os intérpretes que regravaram músicas dela, estão Clara Nunes, Gal Costa, Gilberto Gil, apenas para citar alguns.
Ivone Lara marcou a história do samba de diversas formas. Foi a primeira mulher a integrar a ala de compositores da Império Serrano, tendo assinado a composição do samba-enredo “Os Cinco Bailes da História do Rio” (1965), ainda hoje listado entre os melhores de todos os tempos. Com uma carreira marcada pelo pioneirismo, ela atuou como enfermeira e assistente social antes de se dedicar exclusivamente à música, o que só fez após se aposentar. Ao longo da carreira, gravou 15 álbuns, compôs dezenas de canções e recebeu prêmios e homenagens, como a Ordem do Mérito Cultural, principal condecoração do Governo Brasileiro à área da cultura, que ela recebeu em 2016.
Mariza Black, uma das cantoras paraenses que é referência quando se trata de samba, diz que Dona Ivone Lara é uma grande inspiração para sua carreira, que soma 20 anos de atuação na cena paraense. “Ela é nossa grande rainha, foi a primeira compositora a participar da ala de compositores de uma escola de samba. Mesmo tendo que omitir que era mulher para participar, ela foi uma resistência e uma referência”, ressalta.
“A data de nascimento dela foi escolhida para enaltecer as mulheres do samba. Então, fico muito feliz de poder celebrar esse dia ao mesmo tempo homenagear Dona Ivone Lara, em suas obras, repertório e sua história de vida. O samba nasceu nos quintais apadrinhado pelas tias, mas não era permitido que as mulheres executassem ou cantassem numa roda de samba e, devido ao preconceito, fomos por muito tempo excluídas desse circuito. Para participar, as mulheres enfrentaram muitas barreiras. Hoje, a gente ainda passa por muitos desafios, mas nada comparado ao que foi. Então, é um dia de alegria e de celebração levantar a bandeira no samba e resistir”, diz Mariza Black.
Nesses 20 anos de carreira, Mariza vem atuando no samba-enredo e samba de roda, além de ser intérprete. “Foram anos de lutas e hoje a gente vem colhendo os frutos. Fizemos um trabalho com muito amor, mas de resistência. Logo no início, sofri muitos preconceitos e muitas portas foram fechadas. E com o tempo, vejo que assim como grandes mulheres abriram portas para mim, eu abri para outras também, trazendo para o palco figuras femininas tocando, cantando, na técnica e na produção, que integram o coletivo Tem Mulher na Roda de Samba, idealizado por mim, por Ellen Silva, que faleceu no ano passado, pela cantora, compositora e produtora cultural Cris Matos, e Melina Foro”, ressalta ela, dizendo que hoje o coletivo é coordenado por sete mulheres e tem mais de 47 integrantes.
Mariza festejará este sábado no palco. Às 17h, ela estará na Casa do Gilson pelo aniversário de Galo Garnizé, que convidou a sambista e várias mulheres para fazer uma homenagem dedicada ao Dia da Mulher Sambista. Em breve, a cantora também lançará um novo trabalho, “Beleza Africana”, previsto para o dia de seu aniversário, 15 de maio. “O samba é resistência, é amor e união. Que possamos fazer o samba todos os dias, ou seja, resistir todos os dias, amar, e viva a mulher na roda de samba!”
MULHER NA RODA
Fundado há dois anos, o coletivo Tem Mulher na Roda de Samba tem intensificado sua ação no sentido de valorizar e dar visibilidade à presença feminina no samba. Funciona com encontros formativos e a realização de debates envolvendo a mulher dentro da roda de samba em todos os seus aspectos.
“Uma peculiaridade nossa é que são mais de 40 mulheres em tudo o que envolve a produção e a execução de uma roda de samba. São cantoras, compositoras, produtoras culturais, musicistas, técnicas de som, sonoplastia, atuantes no cenário e iluminação. Nós integramos um grupo nacional, de vários outros coletivos, onde acontece um encontro anual de todas as rodas. No segundo ano que esse movimento já acontecia, nós conseguimos colocar Belém dentro do circuito desse encontro nacional de mulheres na roda de samba”, destaca Cris Matos, acrescentando que Leci Brandão, Beth Carvalho e Alcione já foram homenageadas em eventos promovidos pelo coletivo.
Cris Matos conta que vem sendo um trabalho também das mulheres sambistas se reconhecerem, o que abriu os olhos para a riqueza da produção feminina no samba paraense.
“Inicialmente, nós começamos a participar do encontro nacional. No ano seguinte, nos organizamos enquanto coletivo no intuito de reunir e fazer um mapeamento de todas essas mulheres que estavam integrando as rodas, cantando, e fazendo um trabalho com a música. Vimos um potencial imenso de mulheres no nosso estado que fazem um samba de boa qualidade, de raiz, além de grupos de pagodes com uma grande variedade. Hoje nós temos uma representatividade muito grande também no samba-enredo. Temos várias mulheres que integram o carro de som das escolas de samba”, cita a cantora, que comanda o carro-som da Piratas da Batucada, desde 2011 uma das escolas do Grupo Especial de Belém.
Para ela, é relevante lembrar Ivone Lara e todas as mulheres sambistas. “A importância da Lei nº 14.834 é a valorização de um trabalho que a gente, enquanto mulher, tem que sempre provar, todas as vezes, que é competente. A gente tem ganhado esse espaço das rodas de samba, com mulheres como Creuza Gomes, que foi a primeira puxadora de escola de samba, e no nosso coletivo, outras mulheres também fazem esse trabalho. É importante valorizar e mostrar que aqui no Norte também fazemos um samba de qualidade e que na Amazônia também tem sambistas mulheres que compõem, que tocam, que fazem uma roda de samba de qualidade, seja na execução, no planejamento ou na produção”, aponta.
PIONEIRA
Creuza Gomes, 76, foi a primeira mulher puxadora de samba no carnaval de Belém e a segunda no Brasil – segundo ela, a primeira foi Eliana de Lima, no carnaval de São Paulo. Atualmente, Creuza é puxadora oficial da Embaixadores do Samba Azulinos, sua escola de coração, e desfilou no carnaval deste ano pela escola Xodó da Nega.
Creuza cantava seresta, conhecido como gênero saudade, e foi convidada a cantar numa roda de samba do Rancho Não Posso Me Amofiná, em 1974, quando subiu em um carro de som, que na época era lugar endereçado apenas aos homens. Dali em diante, foram muitos preconceitos enfrentados, mas o que se sobressai na sua história é a palavra superação. Por isso, ela festeja a instituição do 13 de abril como o Dia Nacional da Mulher Sambista.
“Achei uma maravilha esse prestígio dado ao talento da mulher sambista em forma de lei. Até que enfim temos esse reconhecimento de Dona Ivone Lara. Acredito que mulheres como ela devem ser respeitadas. Eu tenho muito orgulho da minha trajetória nesse meio”, afirma a sambista, que atualmente se apresenta na casa de shows Boteco do Bilão, no bairro do Telégrafo, em Belém.
Em 1974, Creuza Gomes subiu em um carro de som pela primeira vez para cantar “Negro Nagô”, que retrata as vivências do homem negro. “Eu tinha de 25 para 26 anos. Seu Nilo, que era do Quem São Eles e amigo do maestro Ruy Guilherme, do Rancho, os dois me convidaram para cantar no Rancho. Mas eu não estava cantando mais porque tinha me separado e meu filho era pequeno. Um tempo depois, seu Laércio Gomes era o carnavalesco do Rancho, em 1974. Ele me convidou para ir em um ensaio da escola e assim passei a frequentar as rodas de samba do Rancho. Foi onde recebi o diploma de sambista e onde ganhei o meu primeiro troféu, na década de 1980. Fui para a Boêmios da Campina, além da Embaixada Império Pedreirense, e passei por todas as escolas de Belém. Foi uma experiência muito legal”, lembra ela, que também cantou no [Clube Carnavalesco] Xavante, no Bloco Unidos de Vila Farah durante a década de 1970, na Grande Família e Quem são Eles.
De lá para cá, ela não parou mais: recebeu vários títulos, sendo o de Primeira-dama do Samba o de destaque, além de ser comendadora do Cacique Guaimiaba, da Cidade de Direitos. Conquistou 21 troféus de melhor intérprete e o de Imperatriz da Saudade, título concedido pela cantora Cleide Moraes em um de seus shows.
Creuza Gomes diz que a técnica musical era um recurso diferenciado dos puxadores de samba da época. “Para puxar a escola, não tinha cavaco e violão, era só a bateria. A gente se ligava no tom pela terceira chamada da bateria, mas se perdesse o tom, já era”, lembra.
“Logo no início entrei meio desconfiada no meio de muitos homens, porque a sociedade via a mulher no carro de som como alguém sem valor. Sofri muito nesse sentido, mas me mantive firme e sempre respeitei para ser respeitada. Todos têm o maior respeito e me reverenciam hoje, mas sempre existiu muito preconceito, imagina há 40 anos. A diferença é que as pessoas não apontam mais o dedo pra gente, mas ainda ocorrem comentários pesados nos bastidores”.
Ela diz que a aparência era uma das coisas colocadas em cheque. “Penso que esse preconceito existia porque as pessoas achavam que a gente não merecia respeito pelas roupas que usa e antes esse julgamento era mais expressivo. Eu sou muito danada (risos), uso roupas extravagantes e provocantes, com transparência, sem forro, mostrando tudo, mas não me importo mais. No início da carreira, eu ficava constrangida. Ficava com vergonha do meu pai, mas ele, por outro lado, sempre me apoiou. Fui caloura e ele me levava no ônibus cheio de gente. Quando passei a cantar samba, ele amou”, recorda ela, dizendo que hoje se sente reverenciada.