Aline Rodrigues
Tradição e ancestralidade estão presentes na produção de artistas indígenas. Nas mais diferentes linguagens, mesmo em expressões mais contemporâneas, surgem como forma de resistência, e se entrelaçam também às pautas políticas, contra tentativas de apagamento da história dos povos indígenas. Neste dia dedicado a eles, a arte nos leva à reflexão sobre essa luta coletiva, e caminhos apontados pelos olhares de quatro jovens indígenas.
Trabalhando com técnicas de colagem e arte gráfica, para retratar indígenas e sua cultura, a artista visual Moara Tupinambá atua nas causas de seu povo. Natural de Mairi, em Belém, sua ancestralidade genealógica vem da região do Baixo Tapajós (Vila de Boim e Cucurunã), mas ela vive atualmente em São Paulo. Foi uma das artistas destacadas no 8º Prêmio de Artes Tomie Ohtake, concedido pelo Instituto Tomie Ohtake, e também participou da megafeira SP-Arte. Desde o início do mês, expõe a série “Mirasawá” no Centro Cultural São Paulo.
Moara integra o coletivo paraense Mulheres Artistas (MAR), é sócia do Colabirinto e vice-presidente da Associação Multiétnica Wyka Kwara, iniciativa destinada a reunir os parentes nas áreas urbanas. Sua poética percorre cartografias da memória, identidade, ancestralidade, resistência indígena e pensamento anticolonial.
“Venho de um contexto que a gente chama de contexto de retomada, da identidade, da história, de tudo que foi apagado sobre nós, que somos indígenas e fomos transformados em caboclos, em ribeirinhos. Voltei para a comunidade Cucurunã, onde o meu pai nasceu, e até hoje venho apoiando de diversas formas. Por exemplo, com o livro que fiz em 2020 e que traz uma valorização da nossa ancestralidade, da cultura tradicional que vai sendo perdida pela urbanização, especulação imobiliária e pela devastação da floresta, que tem acontecido muito naquela região”, diz Moara, que vem se articulando com os Tupinambá também do Baixo Tapajós, trazendo a arte como ativismo e também forma de gerar algum retorno para as comunidades da região, inclusive outras etnias.
“Tenho feito colaborações com diversos povos no Brasil, principalmente os que são mais apagados e que não têm terras demarcadas, que é a minha luta. Atualmente sou vice-presidenta da Associação Multiétnica Wyka Kwara, que tem sede em Ananindeua, e venho nessa luta do indígena do contexto urbanizado, de como recuperar sua história, se autoafirmar. E da construção de uma comunidade possível, que busque o bem viver”, diz ela, que utiliza diversas plataformas para traduzir as suas pesquisas.
A artista vem se dedicando, por exemplo, ao Museu da Silva, um projeto para falar do resgate da memória familiar indígena e etnocídio.
“Hoje estou nesse cenário de fazer colagens que representam mulheres, tanto da minha família quanto mulheres que foram importantes na minha vida, representações indígenas que me inspiram. Trago a colagem como uma representação nessa série ‘Mirasawá’. Ela está sendo exposta no Centro Cultural São Paulo e vai ter uma exposição dia 1º de maio na avenida Paulista. Fui uma das convidadas, vão ser só artistas mulheres”, conta Moara, que tem como anseio que o Brasil comece a olhar mais para si sua cultura milenar e ancestral e “comece a de fato honrar e valorizar essa cultura, que é bonita, mas infelizmente muito desvalorizada.”
E para Moara, o caminho ainda é longo. “Por mais que a gente tenha conseguido conquistar espaços, precisamos muito descolonizar o pensamento do que é ser indígena e honrar e valorizar os povos originários, principalmente nas escolas. A gente precisa respeitar e trazer os próprios indígenas para contar essas histórias em tudo que é meio de comunicação. Meu sonho é que todo mundo se olhe no espelho e entenda que isso faz parte da sua história. Todo brasileiro tem essa história indígena carregada em si, mas que foi apagada”, pontua.
Arte que precisa ser valorizada
Já o indígena Cristian Renato Fonseca da Silva, conhecido nas redes como Cristian Arapiun, trabalha com pinturas corporais indígenas e começou desde muito novo na arte que faz parte da cultura de seu povo, e que usa o pigmento extraído do jenipapo.
“Venho me aperfeiçoando cada vez mais para levar um trabalho não só dentro da nossa cultura, mas expandi-lo, divulgando nas redes sociais, na internet. Não é meu ganha-pão de todo dia. Mas divulgo nas minhas redes e as pessoas, como já conhecem meu trabalho, entram em contato comigo e eu me desloco até elas”, diz Cristian, que nesse processo explica todo o significado da pintura, a importância de manter a identidade.
“Deixo bem explícito o significado e respeito pela pintura. E é uma forma de também manter nossa identidade. Quando as pessoas veem a gente na rua, cada povo tem sua pintura, então, já sabem de qual etnia a gente é”, explica Cristian, que vem sendo convidado para participar de palestras e eventos em escolas.
Segundo ele, existem embates envolvendo sua arte, pois alguns indígenas não gostam que a pintura seja feita em pessoas brancas. Ele não concorda. “Temos as nossas pinturas que eu não posso fazer em qualquer pessoa, as que têm bastante significado e não posso fazer em não indígenas. Mas outras eu invento quando as pessoas pedem. A pintura indígena dura em média 15 dias e vejo como uma forma de trazer um recurso para mim, como indígena, usar da minha própria cultura para me manter e viver”, explica ele, que é membro do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns e cobra em média R$ 150 por pintura de corpo inteiro.
Natália Lobo, indígena Tupinambá nascida em Belém, mas que cresceu em Macapá (AP), onde se licenciou em Artes Visuais pela Universidade Federal do Amapá, atualmente é acadêmica do curso de Intérprete Criador em Dança pela Escola de Teatro e Dança da UFPA.
“Em meus trabalhos, faço uso de diversas linguagens, desde pinturas em telas, arte urbana, arte digital ou mesmo a dança, como forma de aproximar o diálogo sobre identidade, memória e pertencimento na Amazônia, o forte apagamento indígena que passamos e a importância da espiritualidade na defesa do nosso corpo-território. Já tive a chance de fazer parcerias com outras mulheres indígenas Tupinambá, que estão nas bases do Baixo Tapajós, como também já realizei trabalhos com o Instituto Modifica, que trabalha com jornalismo independente. Minha arte é um lembrete de que estamos aqui e sempre estaremos”, diz ela.
A artista lembra que, no passado, quem geralmente retratava indígenas eram artistas não indígenas, o que ela não vê como problema, mas que os próprios indígenas podem se representar. “Hoje nós temos a chance de, através das artes e outras ferramentas, contar nossas próprias narrativas, que são diversas. Eu acho que é muito nesse sentido que a arte me representa e pode representar o meu povo. Sempre tento trazer as minhas vivências dentro dela, mas também pensando nesse impacto coletivo que a arte pode causar”, diz Natália, para quem esse vínculo começa na infância.
Ela gostava muito de desenhar e sua mãe, mesmo com uma situação financeira difícil, trabalhando como vendedora ou fazendo diárias, fazia o possível para comprar materiais para que ela pudesse produzir.
“Isso para mim já era um incentivo. Só que eu não tinha autoestima e não me reconhecia nesse lugar enquanto artista, acho que muitos de nós ainda não se vêem nesse lugar, como se não fosse algo pra nós. Da mesma forma, era a questão da identidade. Eu não assumia essa identidade enquanto indígena ou enquanto Tupinambá, porque não existia ali autoestima, eu tinha vergonha e não gostava dos traços que carrego, porque me diziam que era feio, algo inferior, e isso marca a gente”, relembra.
Hoje, Natália diz ter consciência de que aquilo que faz pode gerar um mercado, mas que ainda é para poucos. Ela comercializa apenas parte de suas obras, pois algumas têm um significado muito profundo para ela. “Acho que quando trago essa arte, fazendo referência ao meu povo e minha história, estou também fazendo as pazes comigo mesma e quero que meu povo sinta esse orgulho de se enxergar e se reconhecer nela.”
Muito além do artesanato
O influenciador José Neto, o Zé na Rede, indígena Tupinambá que usa as redes para o ativismo indígena, ajudou o trabalho de artistas indígenas aparecerem, fazendo curadoria para que suas peças chegassem ao mercado de arte com o valor que respeitasse toda a importância da criação que envolvem.
“Esse trabalho artístico feito por indígenas vai muito além de um artesanato. Cada peça produzida é uma arte por si só, porque ali está sendo expressado a cultura que vem sendo repassada por gerações. É um grafismo, um conhecimento de matérias primas naturais como o cipó, talas, até no próprio tingimento também. É uma obra de arte em que está embutido muito conhecimento ancestral e cultural”, destaca.
E para ele, não há nada de errado em dar retorno aos indígenas.
“Vejo que através dessas artes, é possível você perpetuar a cultura para aquela comunidade indígena que está produzindo e também ser uma forma de geração de renda. Além de que hoje você tem artistas fazendo parte desse cenário cultural nacional e trazendo outras formas de arte, que se discute se é contemporâneo, isso, aquilo, sendo que é uma arte que fala muito sobre a existência, a vivência, traz referências que fogem completamente do senso comum”, avalia. A internet, claro, é instrumento para ir além.
“O que antes era muito restrito por questões de visibilidade e logística, hoje a internet está permitindo que outras pessoas conheçam esses trabalhos artísticos, que facilite, por exemplo, coisas como o comércio ou como essa conversa que a gente está tendo aqui”, lembra Zé Neto, que respondeu a essa reportagem, assim como os outros artistas, através de aplicativo de mensagens.