TEXTO: Erika Morhy – Especial para o DIÁRIO
Quem visita as paradisíacas praias salgadas da Ilha de Fortaleza, em São João de Pirabas, na costa atlântica paraense, talvez não saiba o potencial que seus elementos naturais têm para contar, ao menos em parte, a história da vida na Terra, a evolução das espécies e as condições ambientais do passado. Presume-se que o rico conjunto de rochas, fósseis e vegetações presentes na chamada Formação Pirabas tenha 23 milhões de anos e dois de seus tesouros já estão registrados pela Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos (Sigep). Dentre eles, os que se veem na ilha. Mas, não é só. Há quem reivindique a necessidade de se considerar este patrimônio de forma integral, incluindo suas riquezas culturais e as relações afetivas e poéticas também construídas com este lugar. Relações, aliás, que têm desempenhado papel importante para a preservação ambiental.
É ilustrativa a festividade do Rei Sabá, realizada na ilha há 112 anos, a cada dia 20 de janeiro. Professor do curso de Museologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), coordenador do Museu Virtual Surrupira de Encantarias Amazônicas e doutor em Museologia e Patrimônio, Diogo Jorge de Melo estuda a manifestação religiosa afro-amazônica há quase uma década. Ele garante que a celebração ao “Rei Sabá é só aqui em Pirabas, é endêmico, local. No Maranhão, tem o Rei Sebastião, que acabou sendo sincretizado com Rei Sabá. O Rei Sebastião é um chefe de encantaria”.
Culto sincretiza Tambor de Mina, Pajelança Cabocla e Umbandas
O pesquisador reafirma a necessidade de se reconhecer a diversidade de expressões religiosas de matriz africana e, especialmente, sua fusão com referências tipicamente amazônicas. Essas minúcias passam desapercebidas por cientistas com olhar restrito a uma única área do conhecimento. Na região Norte, por exemplo, há uma forte expressão do Tambor de Mina, da Pajelança Cabocla e de Umbandas.
Durante roda de conversa realizada na cidade, por ocasião do calendário festivo de 2024, Diogo abordou detalhes do que pode ser lido em seu artigo “O Castelo do Rei Sabá: patrimônios, geodiversidade e mitopoéticas no Município de São João de Pirabas (PA)”, publicado em 2022, na revista Museologia e Patrimônio – Revista Eletrônica do programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio (Unirio – Mast).
Na publicação, ele descreve o “platô em que as rochas na parte superior formam um monumento natural rochoso, aludindo ao formato de um homem sentado, o qual é reconhecido por ser o Rei Sabá petrificado. Um encantado associado ou até mesmo sincretizado com o Rei Sebastião, monarca português que desapareceu na batalha de Alcácer Quibir, no Marrocos, em 1578, e que as religiões afrodiaspóricas amazônidas cultuam como sendo um dos seus gentis, senhores de toalha ou vodunços”, denominações para categorias das entidades cultuadas, que abrigam representações da realeza e nobreza africana e europeia.
Diogo Melo destaca ainda “que Rei Sebastião é uma entidade que vem em rituais de pajelança cabocla, de onde provavelmente se fez integrar ao panteão do Tambor de Mina, se juntando a outros reis, nobres e caboclos. Outra concepção é que os afro-religiosos ligados à Umbanda também tendem a fazer uma associação do rei com o santo católico São Sebastião. Fato evidenciado pela própria data da festividade, que é a mesma do santo católico. Cabe destacar que, no Tambor de Mina, Rei Sebastião normalmente é associado a Xapanã, entidade ligada a doenças e cura, equivalente a Sakpatá e Omulu, diferentemente da Umbanda, que o associa ao santo católico e ao orixá Oxóssi”.
Ritos têm sido alvo de racismo religioso e intolerância
Só se chega à Praia do Castelo – um dos principais afloramentos da unidade geológica conhecida como Formação Pirabas e onde se encontra o Monumental Místico do Rei Sabá – por meio de embarcações e conforme a conveniência da maré. A caravana de pais, mães e filhos de Santo, de devotos e de curiosos é composta por pessoas da cidade, de outros municípios do Pará e mesmo de outros estados, como o vizinho Maranhão.
Em 2024, a programação contou com a participação do Bispo da Diocese Anglicana do Pará, Jesualdo Moura, convidado por uma das organizadoras da festividade, Mãe Rita. Morador de Abaetetuba, ele se integrou à gira de caboclos, no terreiro de Mãe Rita, dia 19, e abriu a celebração do dia 20, na Arena Maria Pajé, às margens do Rio Pirabas. A ritualística cristã teve a participação ativa no altar tanto de Mãe Rita quanto de Pai Pingo, que auxiliaram nos batizados e confirmação de batismo, inclusive de filhos de santo.
Em seu sermão, o bispo lembrou que já foi criticado por cristãos, dada sua parceria com religiosos de matriz africana. E garante que não se importa, porque está certo de que esta relação entre devotos de diferentes crenças é um movimento fundamental para a construção de uma sociedade mais justa. Mãe Rita, que já foi evangélica, tem a mesma percepção e acredita que esta também é uma maneira de combater o racismo religioso.
Em 2001, o monumento natural do Rei Sabá teve arrancada a representação de sua cabeça, como se o rei tivesse sido degolado. Nunca foi identificada a autoria do crime, que chegou a ser atribuído tanto a religiosos quanto a naturistas que se instalaram na ilha, em 1997, no intuito de manter uma colônia de nudismo.
O vandalismo gerou protestos na cidade e o prefeito investiu na recuperação do monumento e de três imagens, possivelmente de gesso e em tamanho humano: Iemanjá, Cabocla Mariana e Seu Zé Raimundo. Diogo Melo assegura que é justamente quando as pessoas se sentem feridas e se mobilizam em defesa de um bem que o patrimônio se configura. Atualmente, das três imagens, apenas a de Iemanjá segue de pé e a urgência na restauração destes vultos é uma das principais revindicações de toda a comunidade que respeita a celebração, independente da fé professada, mas, em especial, de afro-religiosos.
Oferendas dos devotos são feitas com preocupação em preservar a natureza
Não raro, quem experimenta ir à praia, deseja levar consigo pequenas conchas, pedrinhas e outros mimos naturais. Mas, a orientação dos pais e mães de santo é evitar, porque são tesouros do Rei Sabá e o encantado pode se aborrecer com a pilhagem. “Eu, que tenho olho treinado, vejo o tempo todo. São fósseis. Eles têm o costume de falar: olha, não pode levar nada! E isso é uma forma de preservar o patrimônio geológico”, argumenta Diogo Melo.
O pesquisador já registrou mostras de alguns exemplares da classe de moluscos em tamanhos gigantes, de até dois metros. Em 2016, quando participou da festividade pela primeira vez, ele notou diversas oferendas feitas com suportes de cuias para as bebidas e folhas para as comidas, demonstrando uma consciência ambiental por parte dos religiosos e a ideia de preservação do local.
Com mais ou com menos apoio financeiro do poder público, com ataques criminosos ou simpatia de outras vertentes religiosas, a devoção a Rei Sabá tem resistido ao longo tempo e se mantém um campo aberto e quase mágico para quem tem olhos de ver.