EMOÇÃO

Cleber Augusto recupera a voz que perdeu há 20 anos com inteligência artificial

Devido a um câncer na garganta, o artista de 74 anos vive há 21 com afonia total, ou seja, impossibilitado de cantar

A voz de Cleber que se ouve no álbum -ao lado de convidados como Péricles, Seu Jorge, Diogo Nogueira, Xande de Pilares e Zeca Pagodinho- foi reconstruída com a ajuda de inteligência artificial.
Cleber Augusto, ex-Fundo de Quintal (Cadu Andrade/Divulgado)

Muitas histórias se cruzam em “Minhas Andanças”, recém-lançado álbum de Cleber Augusto -ex-integrante do Fundo de Quintal e autor de clássicos das rodas de samba como “Lucidez”, parceria com Jorge Aragão. O enredo mais evidente é a própria realização do álbum.

Devido a um câncer na garganta, o artista de 74 anos vive há 21 com afonia total, ou seja, impossibilitado de cantar. A voz de Cleber que se ouve no álbum -ao lado de convidados como Péricles, Seu Jorge, Diogo Nogueira, Xande de Pilares e Zeca Pagodinho- foi reconstruída com a ajuda de inteligência artificial.

Mas as linhas que se amarram agora em “Minhas Andanças” vêm se desenrolando há mais de 30 anos, quando Alexandre Marmita, Alessandro Cardozo e Tony Vieira começaram a ouvir, ainda sem conhecerem um ao outro, os discos do Fundo de Quintal. Ali, naqueles álbuns, os três se encantavam pelo estilo elegante da composição de Cleber, que sempre entrava com pelo menos uma música.

O trio está no núcleo de “Minhas Andanças”. Cantor e compositor, integrante do Samba do Trabalhador, Marmita foi quem, por ter timbre semelhante e conhecer bem a obra de Cleber, emprestou sua voz para que servisse de base para a reconstrução feita pela IA. Alessandro -músico e produtor com trabalhos com artistas como Zeca Pagodinho– e Tony -executivo da Warner, gravadora responsável pelo projeto- assinam a produção do disco.

Os caminhos dos três e de Cleber foram se cruzando nas últimas décadas. “Eu e o Alessandro nos conhecemos na faculdade de Direito”, lembra Tony. “Eu com o banjo nas costas, ele com o cavaquinho. A partir dali a gente ficou muito amigo. Um dia, ele falou: ‘Vou te levar lá na casa do Cleber Augusto, do Fundo de Quintal‘. Ali que começou a relação com o Cleber.”

Marmita também foi apresentado a Cleber por Alessandro, que já conhecia o compositor pela proximidade que ele tinha com a família de sua namorada. “Eu conheci o Cleber em 2003, numa daquelas festas na casa do Chapinha [apelido de Alessandro] que não tem fim. Começa meio-dia e vai até”, lembra Marmita, que ficou apreensivo quando Alessandro o chamou para o projeto.

“Pensei que era meio loucura, porque não acho a minha voz parecida com a do Cleber”, lembra o cantor. “Achei que talvez eu não fosse dar conta das divisões dele, do estilo de canto. Mas Chapinha me chamou meio que intimando. Como é que eu ia falar não? Fui ao mesmo tempo honrado e assustado.”

Para além do caráter especial que o encontro de amizades antigas traz ao “Minhas Andanças”, Alessandro vê no disco uma marca pessoal que o emociona. “Eu fazia parte de um grupo de samba, só de garotos da minha idade”, conta o produtor. “Gravamos um CD que o Cleber produziu. Agora, quase 30 anos depois, estou tendo a oportunidade de retribuir, produzindo um álbum em homenagem a ele, com ele aí acompanhando isso tudo”.

A deia e a produção do álbum

A ideia de “Minhas Andanças” veio de Tony. “Como gerente artístico, estou sempre viajando muito”, conta. “Tenho minhas playlists de artistas que gosto. E também me interesso muito por tecnologia, e tem um podcast que ouço sempre, ‘Papo de IA’. Num voo, ouvi a playlist toda do Cleber e, quando terminou, fui ouvir o podcast. Ter ali uma coisa depois da outra, pensar sobre o quanto estão sendo aperfeiçoadas as inteligências para áudio, aquilo explodiu minha cabeça na hora.”

Ao desembarcar, ele já ligou para Alessandro e contou da ideia. Com a aprovação da gravadora, faltava só falar com o próprio Cleber, que recebeu o projeto com um misto de sentimentos “Fiquei muito balançado”, lembra o compositor, que consegue falar, com uma voz metalizada, por meio de um aparelho metálico que encosta no pescoço.

“Como eu vou cantar? Fiquei boquiaberto, surpreso com tudo, sentindo ansiedade e medo. Mas falei: ‘Vamos nessa’. Abracei com o maior carinho. Na primeira prova de voz que ouvi já fiquei emocionado. Me ouvia cantando para mim. Aquilo me fascinou.”

Cleber acompanhou de perto a gravação, garantindo legitimidade ao disco. Marmita lembra como era o processo de gravação: “Ele não se metia de cara, não sugeria nada. Deixava acontecer. Depois, de acordo com o que eu fizesse, ele opinava. O Chapinha perguntava: ‘Gostou, Cleber? É você aí?’. Aí ele dizia: ‘Um pouco mais pra cá, estende aqui, encurta ali’. Em todas as faixas. Ele ouviu e assinou tudo. Não passou nada sem que tivesse o aval dele”.

O compositor conta ter se emocionado em diversos momentos da gravação, como quando Péricles gravou “Ímã”, a única canção inédita do projeto. Ou ao ver Diogo Nogueira, “que eu peguei no colo”, entoando seu clássico “Timidez”. “Alessandro brincava sempre: ‘Tá vendo a merda que você fez? Agora segura”, diverte-se Cleber.

Participações e influências musicais

A lista completa de convidados de “Minhas Andanças” reúne diversas gerações. Além de Diogo e Péricles, inclui Ferrugem, Mumuzinho, Sorriso Maroto, Diogo Nogueira, Seu Jorge, Roberta Sá, Pretinho da Serrinha, Marvvila, Menos é Mais, Yan, Zeca Pagodinho, Xande de Pilares e Tiee. Todos fãs declarados da composição de Cleber, uma assinatura marcada pela busca de caminhos originais nas melodias e harmonias.

As influências de Cleber são insuspeitas. “Os primeiros que fizeram minha cabeça foram os Beatles”, lembra o artista. “Eu tinha uma banda que tocava só as músicas deles. Éramos bem conhecidos no bairro, tocávamos nos clubes da região. Depois, João Bosco. Eu gostava de ousar, dos acordes mais dissonantes. Aprendi muito com as músicas do João, pra mim ele é um dos melhores nisso.”

A tecnologia e os direitos autorais

A despeito de toda a emoção que o projeto desperta, “Minhas Andanças” toca numa questão trazida pela tecnologia: até que ponto se pode criar -ou recriar- a voz de alguém “em laboratório”?

Tony defende que o respeito ao direito intelectual deve pautar a discussão. “A gente gravou 14 obras de um cara que está vivo e está interpretando, usando a IA para interpretar, porque ele não tem mais voz. Todos os parceiros dele, de todas as obras, foram consultados. Não é como pegar uma voz de um artista e botar numa propaganda do meu produto, do meu barzinho, porque isso estaria ferindo o direito intelectual dele. Acho que esse é o limiar.”

MINHAS ANDANÇAS

– Onde Disponível nas plataformas digitais
– Autoria Cleber Augusto
– Gravadora Warner Music Brazil

@jovempanentrete

Após perder a voz há 20 anos por causa de um câncer na garganta, o sambista Cleber Augusto, de 74 anos, voltou a “cantar” graças à inteligência artificial. No projeto Minhas Andanças, a tecnologia recriou sua voz original a partir dos vocais do cantor Alexandre Marmita, que tem timbre semelhante. O material foi usado para treinar o software e recuperar a interpretação única de Cleber. 📹 Reprodução: warnermusicbr 📺 Confira na JP News e Panflix #JovemPanEntretenimento #InteligênciaArtificial #CleberAugusto #Tecnologia #Samba #Inovação

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Texto de LEONARDO LICHOTE