ENTREVISTA

Clara Pandolfo: cientista pioneira

Livro conta história da professora, pesquisadora paraense, primeira química formada no Norte

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O jornalista, historiador e escritor Murilo Fiuza de Melo lança, no dia 1º de setembro, no Palacete Faciola, em Belém, o livro “Clara Pandolfo, uma cientista da Amazônia”, a história da professora e pesquisadora paraense que viveu à frente do seu tempo. Clara Pandolfo foi a primeira mulher a se formar em química na região Norte, aos 17 anos, em 1929, e uma das cinco primeiras do país.

Profissional inspiradora e incentivadora, pioneira na emancipação feminina, Clara Pandolfo enfrentou, desde os anos de 1930, as barreiras impostas às mulheres, mas conseguiu deixar um relevante legado de vida pública. Segundo Murilo Fiuza de Melo, a cientista utilizou conceitos de economia e ecologia na implementação de projetos de manejo florestal sustentável como uma alternativa para um desenvolvimento da Amazônia, décadas antes de essa técnica ser implementada no país.

“A única ocupação econômica que não destrói a cobertura florestal é a exploração florestal organizada, que permite a utilização desses recursos indefinidamente”, afirmou a cientista, em maio de 1972.

Clara é autora de cerca de 50 publicações sobre a região amazônica, lançadas entre os anos 1950 e 1990, nas quais apresentou reflexões pioneiras e ampliou a perspectiva sobre a maneira de aproveitar os recursos naturais do território de maneira sustentável, assinala o autor.

Clara Pandolfo morreu aos 97 anos, em 2009, e seu legado hoje é praticamente desconhecido pelos brasileiros. O livro, que será distribuído gratuitamente para escolas e bibliotecas, faz parte de um grande projeto, que inclui ainda um minidocumentário sobre a vida de Clara e um site, além de um ciclo de palestras com estudantes de ensino médio e de universidades do Pará.

Leia a seguir a entrevista com o jornalista.

P Como nasceu a ideia de resgatar a história de Clara Pandolfo?

R Descobri o lado profissional da cientista Clara Pandolfo já adulto e formado como jornalista. Tivemos várias conversas sobre o desenvolvimento da Amazônia. No Natal de 2008, eu a vi pela última vez. A ideia de escrever o livro sobre ela veio naturalmente, após a sua morte, em julho de 2009. Fiz algumas entrevistas em 2010 e escrevi cinco capítulos, mas, por conta do trabalho, deixei o projeto de lado. A vida me levou para outros caminhos e publiquei quatro livros nesse período. A obra sobre Clara, que era para ser minha estreia como escritor, veio 16 anos depois, mas, acredito, que em boa hora. Este ano, teremos a primeira COP do Clima na Amazônia, justamente na cidade onde a cientista nasceu, viveu e morreu. Além de resgatar a memória dessa grande paraense, colocando-a entre os grandes defensores e defensoras de um desenvolvimento para a Amazônia, o livro tem o objetivo de mostrar que, sim, é possível a uma mulher fazer ciência e se destacar, mesmo quando, ainda hoje, elas são minoria na área.

P Fale um pouco sobre a química, a professora e a cientista Clara Pandolfo.

R Clara foi uma mulher multifacetada, unida por dois grandes pilares: o amor à Amazônia e o amor à família. Sua formação profissional foi mais por contingência financeira familiar do que propriamente por um apelo vocacional. Isto porque, assim que concluiu o ensino médio, ela acalentava o sonho de ser aviadora, seguindo os passos de Anésia Pinheiro Machado, primeira mulher a realizar um voo solo no Brasil, mas seu pai, comerciante em Belém, não tinha condições de mandá-la para o Sudeste do país, onde se localizavam as escolas de aviação. E aí é que entra a figura de sua mãe, Judith, uma paraense de ideias avançadas, que lutou para que todos os filhos – cinco no total – fizessem uma faculdade.

A mãe a convenceu de fazer química na antiga Escola de Chimica Industrial, que funcionou entre 1921 e 1931. O curso de nível superior era gratuito. Ali, Clara conheceu o naturalista francês Paul Le Cointe, diretor da escola, que virou seu guru intelectual. Como ela própria afirma, foi com Le Cointe que aprendeu “a colocar a vontade a serviço do nobre ideal de bem servir à Amazônia”. A cientista é autora de cerca de 50 publicações sobre a região amazônica. Apresentou reflexões pioneiras e ampliou a perspectiva sobre a maneira de aproveitar os recursos naturais do território de maneira sustentável.

A educadora Clara, assim como a química, também entrou em sua vida por acaso. Inicialmente, era uma maneira de completar a renda familiar. Começou dando aulas particulares, depois trabalhou como professora de escolas privadas de Belém e, por fim, a educação ganhou dimensões importantes na carreira da cientista, que, em 1989, recebeu o título de professora emérita da UFPA, onde também deu aula. Clara acreditava que o investimento na educação era a chave para o desenvolvimento da região e sempre buscou investir na capacitação técnica de seus conterrâneos quando ocupou cargos de direção, seja como diretora da Escola de Química Industrial do Pará ou no Departamento de Recursos Naturais da Sudam, onde trabalhou por 24 anos.

P Como foi o seu processo de pesquisa e produção do livro?

R A pesquisa é o que mais me fascina no processo da escrita de um livro. Pesquiso muito, sou detalhista, só fico satisfeito quando consigo chegar às respostas que procuro. Funciona como um quebra-cabeças no qual cada peça encaixada é uma vitória. O livro de Clara foi construído em dois momentos: em 2010 e 2011, quando entrevistei algumas pessoas e escrevi os capítulos iniciais; e partir de 2024, quando decidi retomar o projeto. Os capítulos iniciais serviram como guia, mas foram reescritos em sua maior parte. Fiz novas entrevistas e escrevi os demais capítulos.

Um fato importante, e que me facilitou muito na produção do livro, foi o imenso acervo de Clara. Ela era uma pessoa extremamente organizada. Toda a sua produção profissional e pessoal estava guardada em pastas de elásticos coloridas. Recortes de jornal desde os anos 1930, cartas trocadas, textos autobiográficos, tudo muito bem arrumado. Impressionante. Embora no fim da vida a cientista dissesse que queria ser esquecida, eu tendo a acreditar que ela falava isso da boca para fora. Na verdade, Clara organizou tudo para que alguém pudesse resgatar a sua memória. Ela sabia, de alguma forma, que sua história era importante e que precisa ser preservada e difundida.

P Como foi a participação de Clara Pandolfo na luta pela emancipação da mulher e pelo voto feminino no Brasil?

RClara sempre buscou ser independente, mas ela tinha que saber lidar com os costumes que a sociedade da época lhe impunha. Ela se forma em 1929 e, em seguida, sua mãe lhe pergunta se ela quer trabalhar ou ser uma dona de casa, esposa e mãe dedicada, como era o caminho natural das mulheres da Belém da primeira metade do século XX. Ela responde à mãe que seguiria trabalhando e ouve, então, que deveria se acostumar com o preconceito e os ataques que sofreria dali para a frente. Em 1930, ela já estava estagiando e logo depois conseguiu o seu primeiro emprego.

Em muitas das fotos em que a cientista aparece, o que vemos é uma mulher cercada por homens. O mundo do trabalho, afinal, era um espaço masculino e, não à toa, Clara sofreu todos os tipos de assédio, mas nunca esmoreceu. E em todos os sentidos. Para não ser “mal falada” na sociedade, a cientista tinha que mostrar também que era uma boa mãe e esposa. Vivia uma dupla jornada. Acordava antes da cinco da manhã, lavava roupa da família no tanque, preparava o café e o almoço, deixava os três filhos na escola, costurava e ainda pintava a casa, com tintas que ela mesma produzia a partir das suas habilidades como química.

A entrada no movimento sufragista se deu pelas mãos de sua irmã mais velha, Olímpia, que foi sua professora de piano – aliás, Clara foi uma exímia pianista. Em 1931, as duas mergulharam na luta pelo voto feminino. Foram eleitas diretoras do Núcleo Paraense pelo Progresso Feminino, que representava no Pará a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, criada pela bióloga e feminista paulista Bertha Lutz. Graças à luta das sufragistas, o Congresso Nacional aprovou, em 1932, um novo Código Eleitoral, que, finalmente, reconheceu o direito das mulheres de eleger e de se candidatar a cargos políticos.

P Que papel teve Clara Pandolfo na defesa da Amazônia e dos recursos naturais da floresta em um tempo em que pouco se falava sobre conservação do meio ambiente?

R Clara Pandolfo foi uma das cientistas mais importantes da história da Amazônia. Visionária, ela idealizou, ainda no início dos anos 1970, o monitoramento do desmatamento por satélite e defendeu o manejo florestal sustentável como principal política pública para a região, visando manter a floresta em pé e gerar renda para as populações locais.

Como diretora de Recursos Naturais da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), a cientista se incomodava com o fato de a agência não ter condições de fiscalizar se os projetos agropecuários incentivados vinham mantendo os 50% de florestas preservadas nas áreas cedidas, como determinava o Código Florestal de 1965. Em 1972, ela soube que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) havia tido acesso a imagens da floresta amazônica produzidas pelo ERTS, um satélite norte-americano, e vislumbrou ali a saída para o controle do desmatamento. No ano seguinte, ela fechou um convênio com o Inpe para identificar áreas desmatadas por projetos agropecuários no nordeste do Mato Grosso por meio de imagens de satélite. O teste verificou que, sim, era possível usar a ferramenta para este tipo de controle ambiental. Como diz o pesquisador aposentado Antônio Tardin, que coordenou o Prodes, o programa de monitoramento de desmatamento por satélite do Inpe, Clara Pandolfo viabilizou o sensoriamento por satélite no Brasil e deu justificativa mais que plausível para que o país entrasse nesse programa espacial.

Clara foi pioneira em unir os conceitos de economia e ecologia ao discutir o manejo florestal como alternativa para um desenvolvimento realmente sustentável da Amazônia, antes mesmo da palavra sustentável entrar no léxico do debate ambiental no país. Ao opor-se à visão dominante da época, da ocupação pela agropecuária, Clara viu suas ideias caírem no esquecimento. Somente em 2006, com a publicação da Lei de Gestão de Florestas Públicas, elas foram, parcialmente, resgatadas.

P Que contribuição o trabalho e os estudos de Clara Pandolfo oferecem para a compreensão das questões amazônicas nos dias de hoje?

R As ideias de Clara são importantes nos dias atuais por dois aspectos. O primeiro é a formação de recursos humanos na região. Clara nasceu, viveu e morreu fazendo ciência a partir da Amazônia. Ela defendia que os amazônidas deveriam se apropriar da sua região. Não era uma questão de bairrismo, mas desenvolvimento local. Por que não podemos ter os nossos “Carlos Nobres” aqui também?

O segundo aspecto fundamental era olhar, como ela dizia, a “vocação ecológica” da região, que é a floresta. “A única ocupação econômica que não destrói a cobertura florestal é a exploração florestal organizada, que permite a utilização desses recursos indefinidamente”, afirmou, em maio de 1972. Sim, é possível gerar renda, empregos a partir da floresta em pé. A concessão de florestas públicas por meio de manejo florestal, projeto que ela defendeu a vida toda, é uma solução viável, está na Lei de Gestão de Florestas Públicas de 2006, mas ainda precisamos avançar nesse sentido. O país pode se tornar o maior exportador de madeira de origem certificada do mundo em um cenário de aumento da demanda, conforme estimativa da FAO, a agência da ONU, para 2050. Para isso, ações de repressão à ilegalidade são fundamentais, mas não bastam. Elas precisam vir acompanhadas de ajustes na estratégia de concessões florestais para criar um ambiente de negócios favorável às comunidades locais e aos investidores que desejam operar na legalidade.

Um trabalho de pesquisadores da Rede Simex – criada por ONGs, entre as quais o Imaflora e o Imazon – concluiu que o manejo florestal tem grande potencial para produzir transformações socioambientais positivas na Amazônia e que há uma grande sinergia com a bioeconomia, dentro de um cenário de aumento da demanda mundial por madeira tropical de origem legal. Segundo eles, seja em áreas privadas, concessões em áreas públicas ou em áreas comunitárias, é preciso que haja integração dos negócios da bioeconomia com a cadeia produtiva madeireira.

P E qual a importância e resgatar essa história para as futuras gerações, especialmente as mulheres cientistas?

R Clara Pandolfo lutou muito para conseguir realizar seus objetivos pessoais e profissionais. Enfrentou, desde os anos 1930, diversas barreiras impostas às mulheres e que perduram até hoje, mas conseguiu deixar um relevante legado de vida pública. Nesse sentido, é um ponto de prova que serve para motivar e inspirar novas gerações de estudantes na busca pelo conhecimento, especialmente aquelas que desejam seguir o caminho da ciência.

P Às vésperas da COP 30, como o livro “Clara Pandolfo, uma cientista da Amazônia” pode iluminar os debates sobre as mudanças climáticas?

R As ideias defendidas por Clara, ainda nos anos 1970, mostram que o caminho para o desenvolvimento sustentável está aberto, mas é preciso pavimentá-lo para seguir adiante. É possível ter uma Amazônia mais equânime socialmente, uma Amazônia onde o modo de vida de sua população tão heterogênea – sejam ribeirinhos, indígenas ou moradores das periferias urbanas da região – possa ser compreendido, respeitado e que todos tenham a chance de se desenvolver plenamente. E para isso não precisamos cortar uma árvore a mais. Clara olhava a Amazônia pela ótica do desenvolvimento de sua gente em harmonia com a floresta. Isso antes mesmo de falarmos do conceito de sustentabilidade.