HISTÓRIA

Cinemas de rua: um capítulo marcante da história de Belém

Belém chegou a ter 20 cinemas de rua, mas hoje eles só existem nas memórias dos cinéfilos, com exceção do Cine Olympia

Cinemas de rua: um capítulo marcante da história de Belém

Em uma Belém ainda marcada pelo apogeu da borracha, onde atividades musicais e teatrais ocupavam o centro da vida social e cultural, uma nova forma de diversão começava a se firmar: o cinema. A chegada das primeiras exibições cinematográficas não apenas transformou o comportamento da sociedade da época, como também provocou mudanças significativas na configuração urbana e arquitetônica da cidade.

Ainda que exibições esporádicas de filmes já ocorressem em circos, teatros, feiras e cafés, foi a partir dos anos de 1911 e 1912 que Belém viu surgir, em maior número, salas permanentes de exibição de filmes e documentários. Mesmo enfrentando diferentes crises ao longo das décadas, os chamados cinemas de rua permaneceram como parte da paisagem cultural da cidade até meados de 2006, quando praticamente todos encerraram suas atividades. Ainda assim, esses espaços continuam vivos na memória afetiva de muitos belenenses.

Da Belle Époque ao surgimento dos cinemas permanentes

As últimas décadas do século XIX e o início do século XX foram marcadas por intenso crescimento econômico e demográfico em Belém, impulsionado também pela imigração europeia. Com os imigrantes, chegaram os primeiros projetores que deram início à exibição de filmes mudos na capital, concentrando-se inicialmente em locais que não tinham como finalidade a exibição de filmes, mas outras atividades artísticas e culturais.

Como destaca o professor Pere Petit, da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará (UFPA), no artigo “Cinema e História no Fim Da Belle-Époque Belemense (1911-1913): Contribuição ao Cinema Paraense do Cineasta Ramon de Baños”, o cinema no Pará passou por duas fases distintas em seu início. A primeira, conhecida como a época do Cinema Ambulante e Sazonal, caracterizou-se por exibições em espaços alternativos. A segunda teve início em 1908, com seu auge entre 1911 e 1912, quando começaram a ser erguidas salas de cinema permanentes.

Uma das construções mais emblemáticas desse período foi o Cinema Olympia, inaugurado em 1912 e que atualmente passa por obras de restauro. “Inicialmente não existiam salas de cinema. Especialmente na época do Círio de Nazaré tinham muitas exibições de filmes, mas depois desapareciam. Um dos primeiros cinemas permanentes vai ser o Odeon. Já os dois grandes cinemas frequentados pela elite, em que os ingressos eram muito mais caros, vão ser o Rio Branco e o Olympia, remanescentes do boom da borracha, mas que vão se manter por mais tempo, com troca de donos ao longo dos anos”, explica Pere. “O Olympia é considerado o cinema mais antigo em funcionamento no mundo. Antes tinha um concorrente que era o Olympia de Lisboa, mas que já deixou de funcionar a alguns anos.”

A era de ouro das salas de exibição

Médico, jornalista, crítico e pesquisador de cinema, Pedro Veriano registrou no livro ‘Cinema no Tucupi’ que no início da segunda década do século XX, Belém teve 12 salas de cinema funcionando e não mais teatros alugados, número que cresceu consideravelmente chegando a uma concentração de cerca de 20 salas de exibição ainda nos anos 20.

Ainda que a região central de Belém concentrasse uma grande quantidade de cinemas, as salas não se resumiam a esse trecho. Ao longo dos anos houve também a expansão das salas de exibição para os diferentes bairros da cidade, até mesmo para os distritos como Icoaraci e Mosqueiro. “As salas de bairro eram modestas e sempre cobravam mais barato do que as do centro”, relata Pedro Veriano.

Tal configuração de cinema de rua possibilitou que, por algum tempo, Belém tivesse salas de exibições na maioria de seus bairros, ainda que em proporções menores e menos luxuosas que o Olympia, por exemplo. Mais do que descentralizar as exibições cinematográficas, os chamados cinemas de bairro também fomentavam um ritual de afetividade, de vizinhança com os seus moradores, como avalia o crítico de cinema, Marco Antonio Moreira.

“Os cinemas, assim como os teatros, são referências de memórias das pessoas. Neles há pessoas que viveram grandes momentos ou dramas, as pessoas se emocionam, choram, muita gente começou a namorar num cinema e depois acabou casando com aquele namorado”, relaciona. “São essas coisas que fazem com que as salas de cinema sejam lembradas nos últimos tempos pelos historiadores e pesquisadores como uma referência de memória das pessoas que frequentaram. A sala de cinema não é apenas uma sala de cinema, também guarda a memória das pessoas que frequentaram”.

Memórias de uma época que resiste

Marco Antonio guarda boas lembranças do antigo Cine Palácio, inaugurado no final dos anos 1950 e encerrado em 1997, após ter o prédio vendido para uma igreja. “Era o maior cinema de Belém, ficava na Manoel Barata com a avenida Presidente Vargas. Durante muito tempo cinema Olympia e Palácio foram os melhores”, afirma. “Mas não podemos esquecer também o Cinema Nazaré e o Cinema Iracema, cinemas maravilhosos que eu frequentei bastante e que funcionaram até 2006. Todos esses cinemas – o Cine Palácio, o Olympia, o Nazaré e o Iracema – eram do mesmo grupo, do Grupo Severiano Ribeiro”.

Já o Circuito Cinearte era composto pelos Cinemas I, II e III, localizados na travessa São Pedro. Marco Antonio Moreira lembra que os Cinemas I e II foram inaugurados em 1978. Já o Cinema III foi inaugurado em 1987 e ambos funcionaram até 2006. “Então, a última sala de exibição de rua inaugurada em Belém foi o Cinema III, inaugurado em 1987. Mesmo antes da crise maior, Belém passou um bom tempo sem inaugurar um cinema. O Cine Ópera foi inaugurado em 1961 e passaram mais de 15 anos para inaugurar outro cinema, que foram os Cinemas I e II, inaugurados em 78”.

A crise e o desaparecimento das salas de rua

Atualmente, apenas o Cine Olympia resiste como testemunha dessa era. Marco Antonio aponta uma série de fatores que explicam essa mudança. Ainda nos anos 50, a chegada da televisão gerou uma forte crise financeira para o setor, apesar de, no Brasil, tal influência não tenha sido sentida de forma imediata já que, à época, nem todo mundo tinha condições financeiras de adquirir um aparelho de televisão.

Já nos anos 90 a chegada das fitas VHS também provocaram mudanças. Ainda assim, a crise mais violenta ocorreu a partir dos anos 2000.

“A maioria dos cinemas de rua do mundo inteiro acabaram, na virada dos anos 90 para os anos 2000, devido a uma grande crise que houve no mercado de cinema e a partir da qual se colocou essa configuração que deu certo para os exibidores e produtores, que são os cinemas de shopping, normalmente localizados no último andar, misturados com outras lojas. É bom para os exibidores e produtores e talvez para uma nova geração que também está construindo as suas histórias lá, mas não sei se foi tão bom para quem gosta do cinema como uma referência”.

Segundo ele, o custo elevado também tornou inviável a manutenção ou criação de cinemas independentes. “O cinema de rua, antigamente, tinha aquela característica em que as pessoas que tinham um certo valor financeiro, conseguiam abrir uma sala. Hoje isso ficou inviável, só é viável para as grandes companhias. Para montar um cinema, hoje, é necessário mais de R$1 milhão, então são vários fatores, internos e externos, que fizeram com que o cinema de rua perdesse espaço e basicamente desaparecesse”.

Um patrimônio em risco

Ainda que mudanças comportamentais e tecnológicas sejam naturais, Marco Antonio lamenta que muitas histórias e referências ligadas aos antigos cinemas de rua tenham se perdido com o tempo. Muitas construções históricas que abrigaram salas de exibição foram demolidas, restando apenas em poucos registros fotográficos ou na memória de quem viveu aquela época.

Baixe o infográfico e conheça alguns cinemas de rua que já fizeram parte do cenário de Belém. No mapa interativo é possível ver onde ficavam as principais salas de cinema de rua da capital paraense.

(A primeira versão desta matéria foi publicada originalmente em 21 de fevereiro de 2021, na edição impressa do DIÁRIO).