Leonardo Sanchez/Folhapress/São Paulo
Quando foi lançada em 2021, “Cidade Invisível” carregava a promessa de valorizar o folclore nacional e apresentá-lo a uma geração de brasileiros que, mais e mais, perdia o contato com as entidades pouco vislumbradas em séries e filmes.
Não só deu certo, como a produção da Netflix alcançou o ranking dos mais vistos de 40 países, num caso raro de exportação bem-sucedida de obra de gênero brasileira. Dois anos depois, “Cidade Invisível” enfim ganha uma segunda temporada.
Marco Pigossi, protagonista que já atuou para a Netflix em inglês, espanhol e português, conta que a torcida é sempre para que o trabalho viaje o mais longe possível e que ficou feliz de ver o sonho alcançado na primeira leva de episódios. Ele espera agora entregar o mesmo nível de qualidade.
Causará estranhamento no público, no entanto, o caminho tomado pela nova safra. Antes ambientada no Rio de Janeiro, com Cuca escondida nos bares da Lapa e o Boto Cor-de-rosa encalhado nas areias sombreadas pelo Pão de Açúcar, “Cidade Invisível” pôs seus personagens num barco e seguiu rumo a Belém do Pará.
É lá que parece estar Eric, personagem de Pigossi, desde que ele desapareceu no último episódio da primeira temporada ao descobrir que ele próprio era uma entidade folclórica poderosíssima. Cuca, ou Inês, vivida por Alessandra Negrini, embarca para o Norte do país junto com a filha do protagonista, interpretada por Manu Dieguez.
O cenário permitiu a entrada de novos personagens na trama, que gira em torno dos misteriosos poderes de Eric e da proteção da floresta amazônica, ameaçada por garimpeiros que matam indígenas com o aval das autoridades locais.
MUDANÇAS
Os novos ares foram, também, uma oportunidade de aplacar a fúria da internet, de onde saíram críticas a “Cidade Invisível” por ter baixa representatividade indígena em sua primeira temporada, apesar de lidar com temas tão centrais para os povos originários.
Débora, nos novos episódios, é uma personagem vilanesca vivida por Zahy Tentehar, do povo tentehar-guajajara, que põe lenha na fogueira, quase literalmente, ao incentivar as autoridades a liberarem o desmatamento nos arredores da cidade.
A atriz, que também é artista plástica, comemora o fato de com o papel poder apresentar uma outra face dos indígenas, distante do lugar de bonzinho, coitadinho ou de sexualização ao qual muitas vezes são relegados.
“Logo que fui fazer o teste, falei das minhas questões com a série e daquilo que não gostaria de ver. Senti que a segunda temporada faria algo a respeito. Isso já me deu força para dar o meu melhor”, afirma.
“É importante para a reconstrução do nosso audiovisual que os povos indígenas sejam incluídos e entendidos como seres humanos. Chega a ser ridículo ter que falar isso.”
Também há indígenas em outros pontos da trama, no lugar mais tradicional de guardiões da floresta, por exemplo, e por trás das câmeras. Graciela Guarani, ativista e cineasta guarani-kaiowá, assina a direção de alguns episódios.
YANOMAMIS
Criador de “Cidade Invisível”, Carlos Saldanha reconhece as críticas e diz que desde o princípio tinha planos de levar a história para os povos originários. As mudanças não foram, afirma, motivadas pelo burburinho das redes sociais.
Quem faz coro é Negrini: “Não foi todo mundo que criticou. Tenho vários amigos indígenas que ficaram felizes com a série. Mas a nova temporada realmente corrigiu essa questão, se encaminhou melhor”, diz a atriz.
“As críticas eram pertinentes, mas esse era um caminho que já estávamos vislumbrando. Agora, o indígena e a floresta são os protagonistas, o que é muito propício ao momento que a gente vive.”
Elenco e equipe dizem que a segunda temporada vem em boa hora, em meio à crise dos yanomamis, embora reforcem que os problemas que cercam os povos originários são antigos, herdados da colonização, nas palavras de Pigossi.
A eles, se junta ainda Leticia Spiller, que vive a bruxa Matinta Perera, e que já disse sentir uma conexão profunda com o misticismo. Não foi com preocupação, portanto, que ela percebeu o que conta terem sido manifestações sobrenaturais.
Ambas ocorreram em seus dias de gravação, uma num parque, quando um rádio da produção começou a emitir vozes não identificadas, e outra no histórico Mercado da Carne, quando uma lâmpada se acendeu repentinamente e ficou girando.
“Já agradeci à Matinta e pedi a ela que abençoasse a nossa gravação”, afirma a atriz.
Forças femininas comandam a ação
Silvio Essinger/Agência O Globo/RJ
Criada pelo carioca Carlos Saldanha (que conquistou Hollywood ao trabalhar em filmes da série de animação “A Era do Gelo” e, em seguida, emplacou a ideia de “Rio”), “Cidade Invisível” foi uma das séries da Netflix de maior popularidade em 2021, tendo chegado ao Top 10 em 40 países.
Dois anos depois, as desventuras do detetive Eric (Marco Pigossi) entre os fantásticos seres oriundos do folclore brasileiro continuam, com algumas novidades.
A ação se transfere agora das matas do Rio de Janeiro para a Floresta Amazônica e a área metropolitana de Belém. E a série ganha um contingente de personagens femininos e indígenas que reforçam a diversidade desejável para um produto audiovisual brasileiro de alcance internacional.
“Acho que é fundamental a gente levar essa história para onde ela acontece. E, nesse lugar, as forças femininas são muito presentes na cultura dos povos originários”, diz Pigossi. “Essas companheiras que estão comigo aqui realmente tomam a história, enquanto o Eric passa para um lugar mais passivo”.
Nesta temporada de “Cidade invisível”, voltam ainda Luna (Manu Dieguez), a filha do detetive, e a Cuca (Alessandra Negrini), que vai ajudar a menina a procurar o pai na floresta.
E surgem a bruxa Matinta Perera (uma irreconhecível Letícia Spiller); a juíza Clarice, que se transforma na Mula Sem Cabeça (Simone Spoladore); e a viperina vilã Débora, interpretada pela artista plástica maranhense Zahy Tentehar, de origem indígena.
“É uma reparação histórica que está sendo feita nos últimos tempos, mas eu não quero que me chamem por eu ser indígena, quero que me chamem pelo meu talento”, diz Zahy.
IDIOMA NATIVO
Integrante do time de direção da série, Graciela Guarani conta que foi uma decisão conjunta deixar os personagens indígenas se expressarem em idiomas nativos do Norte do Brasil: o tucano e a língua dos tentehar-guajajara.
“A gente trouxe ainda mais riqueza para essa série que já tinha tanto tanto sucesso”, defende.
Saldanha conta que, originalmente, a ideia de “Cidade invisível” era a de que a primeira temporada se passasse na Amazônia – o que enfim acontece agora – e em seguida a ação se deslocasse para outras cidades.
“É muito gratificante para a gente poder fazer isso, porque mostra que o Brasil é plural. A série não tem caricaturas. A proposta é a de mostrar todos os lados da cultura brasileira dentro do contexto atual”, explica.
E tanto é que esta segunda temporada tem como tema o garimpo ilegal de ouro.
“Isso é central numa série em que os protagonistas são os povos indígenas”, diz Alessandra Negrini. ‘È claro que a realidade é muito pior do que o que está ali, mas a gente colabora para dar visibilidade a essa questão”.