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Carreiras de Caetano Veloso e Maria Bethânia convergem na turnê juntos após 46 anos

Carreiras de Caetano Veloso e Maria Bethânia convergem na turnê juntos após 46 anos

Com exceção de uma série de shows há 46 anos, e um disco extraído deles, Caetano Veloso e Maria Bethânia nunca se apresentaram como uma dupla. Os irmãos, que dão início neste fim de semana, no Rio de Janeiro, a uma turnê conjunta por arenas, tiveram trajetórias artísticas independentes e autônomas, mas cheias de momentos de intersecção e de inspiração mútua.

Eles carregam a herança cultural da família e do Recôncavo Baiano, mas enveredaram por caminhos diferentes na música. Ele arquitetou a tropicália, movimento de que ela não quis fazer parte mas mesmo assim foi determinante para que acontecesse. Ela entrou no panteão dos maiores cantores do Brasil mas não sem a ajuda da caneta dele.
Jards Macalé, que os hospedou ainda jovens e desconhecidos no Rio, nos anos 1960, e com quem eles trabalharam ao longo da carreira, brinca com as palavras para dizer o que os irmãos têm de semelhanças e diferenças. “Olha, Caetano é Caetano, e Bethânia é Bethânia. E eles têm muita coisa incomum mas é in-com-um, com in.”
Há pouco de ordinário na arte dos dois. Este ano eles se tornaram um dos assuntos mais comentados no X (antigo Twitter) com postagens de jovens fãs surpresos ao descobrirem que, sim, Caetano e Bethânia são irmãos. No Caldeirão com Mion, da Globo, a apresentadora Sandra Annenberg confessou que demorou para descobrir o parentesco dos artistas.
A nível pessoal, é uma relação que vem no caso dela desde antes do berço. Foi Caetano, quatro anos mais velho, quem deu o nome à irmã, a partir de uma canção de Capiba, famosa na voz de Nelson Gonçalves. Nos shows de 1978, ele cantou a música, seguida no roteiro por outra “Maria Bethânia” a que o artista compôs durante o exílio em Londres, transformando a palavra “better” (melhor, em inglês) no nome da cantora.
É uma dica do repertório que eles devem apresentar na nova turnê, guardado a sete chaves antes do primeiro show. Mas é possível encontrar outras pistas na história. Não devem faltar, por exemplo, “De Manhã”, “Reconvexo” e “Um Índio”, que eles já cantaram juntos e marcam diferentes momentos de suas carreiras.
A primeira, feita por Caetano para a irmã, e lançada em 1965, marca a chegada deles ao Rio. No ano anterior, eles já tinham se apresentado juntos no Teatro Vila Velha, em Salvador, no hoje lendário show “Nós, Por Exemplo”, do qual participaram também Gal Costa, Gilberto Gil e Tom Zé, e que rendeu a Bethânia o convite para substituir Nara Leão no espetáculo “Opinião”.
“Caetano era magérrimo, falante, inteligente e bem sensível, não só com música. Bethânia, com a gente, falava, mas era mais tímida, tinha só uns 18 anos”, diz Macalé sobre essa época. “Frequentavam muito minha casa. Passávamos a noite conversando, tocando, bebendo. Ficávamos numa espécie de ensaio eterno. Bethânia já cantava grave, você nota em Carcará, a música que ela estourou no ‘Opinião’.”
A canção, que Caetano interpretou no show de 1978, rendeu a Bethânia um disco só para ela com “De Manhã” e “Sol Negro”, músicas assinadas pelo tropicalista que podem aparecer nos novos shows. Àquela altura, ele sequer sabia se queria ou se teria uma carreira sua na música.
“Ela conseguiu trabalhar com música antes, mas ele ficava ali, meio de compositor, diretor”, diz Macalé. “Eles sempre estiveram juntos, porque seu Zezinho, pai deles, deu a Caetano a missão de vir com ela para protegê-la. Mas mesmo naquela época Bethânia já era muito independente.”
Em 1966, Macalé tocou violão no show “Pois É”, que juntou Bethânia, Gil e Vinicius de Moraes no Teatro Opinião, sob direção de Caetano. O coautor de “Vapor Barato” ainda tocou violão e fez a direção musical da estreia solo da baiana, na boate Cangaceiro, em Copacabana. “O lugar era pequeno, mas estava totalmente esgotado”, diz. “Ela já era muito conhecida.”
Bethânia assegurava sua independência enquanto Caetano maquinava com Gil e Gal, entre outros, a tropicália. Mas ela também mudou os rumos do movimento do irmão ao sugerir que eles deveriam dar atenção à Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos, que passou a integrar o imaginário tropicalista.
“Intelectualmente, não se aceitava muito a Jovem Guarda, parecia uma coisa menor”, diz Macalé. “Foi Bethânia quem disse,  ouçam bem a música desse pessoal, vejam para onde eles estão dirigindo o trabalho deles, que é popular. Mas era popular sem ser de má qualidade, muito pelo contrário.”
Vieram a tropicália e o exílio de Caetano na Europa, mas já no retorno, em 1972, ele produziu o álbum “Drama”, de Bethânia. Além do trabalho em estúdio, compôs a faixa-título e assinou, ao lado de Gil, a música “Iansã”, que os irmãos cantaram no disco de 1978, outra que pode reaparecer na nova turnê.
Em 1976, Caetano e Bethânia se reuniram com Gil e Gal para formar o grupo Doces Bárbaros e sair em turnê. Jom Tob Azulay, então um cineasta iniciante, acompanhou o encontro e fez o filme que sobre aquela reunião, um registro de performances, ensaios, entrevistas e da convivência entre os baianos.
“Caetano e Gil criaram um repertório novo em poucos meses, e aquelas músicas são todas absurdamente clássicas”, diz Azulay. “É curioso observar que, àquela altura, dos quatro, quem tinha grandes vendagens, um acesso ao grande público, era Bethânia. Ela vendia acima de 200 mil cópias, enquanto os outros eram mais na faixa de 30 ou 40 mil. Só que tocavam num nicho importantíssimo de formação da opinião pública, com muitos intelectuais.”
Foi nos Doces Bárbaros que Bethânia se apossou de “Um Índio”, escrita por Caetano, que depois a interpretou no disco “Bicho”, de 1977, e entrou no repertório de shows dela. Essa canção é quase uma certeza na turnê atual, que também pode contar com “Os Mais Doces Bárbaros” ou “Pássaro Proibido”, esta última de composição assinada pelos dois irmãos.
O filme de Azulay retrata a detenção de Gil pela polícia da ditadura militar, que encontrou um baseado de maconha com ele em Florianópolis. Nesse episódio, a equipe e os músicos ficaram preocupados depois que as autoridades encontraram um saco de pó branco com Bethânia na visão deles, era cocaína. “Era pó de pemba, o preconceito corria solto”, diz o diretor, referindo-se ao pó usado em rituais de religiões de matriz africana.
Ele se lembra que o filme fez sucesso, mas enfrentou problemas para se manter em cartaz. “A garotada acendia baseado dentro do cinema”, diz. “Naquela época, essas plateia mais jovem destruía as salas, quebravam cadeiras  isso quando gostavam muito do filme. E fizeram com o Doces Bárbaros.”
Para o pianista Tomás Improta, os irmãos tinham comportamentos diferentes do estúdio. Ele tocou nos Doces Bárbaros, no show conjunto de Caetano e Bethânia há 46 anos e em diversos discos individuais deles nos anos 1970 e 1980.
“São duas pessoas muito parecidas, mas muito diferentes também. É difícil explicar isso”, diz. “Com Caetano, era liberdade total, não tinha direção musical, ele que mandava e a gente podia fazer qualquer coisa, era mais autoral. Com Bethânia, sempre tinha um arranjador. Havia certa liberdade, mas preso ao arranjo e à levada.”
Assim como neste ano, a turnê de 1978 foi aumentado o número de datas conforme a procura do público. Só no Canecão, no Rio, onde o álbum foi gravado, eles ficaram em cartaz durante um mês inteiro. Na época, Bethânia disse que queria há anos fazer a apresentação com Caetano, que “me conhece bem e tem algo de ator, que me estimula”.
“Para mim é difícil dividir o palco com alguém. Em todos os espetáculos que fiz com outros artistas, sempre me reprimi. Fico pensando ‘calma, o show não é só seu’ e acabo não me soltando. Com Caetano é diferente. Temos um jeito parecido. No palco, como eu, ele se transforma, há um vigor em cena nesse espetáculo que me empolga.”
Esta semana, em entrevista ao Jornal Hoje, da Globo, Bethânia disse que era “metida”, e atuou como diretora no espetáculo —”ele me obedeceu mais do que eu o obedeço normalmente”. Além de Improta, a banda tinha o guitarrista e produtor Perinho Albuquerque, colaborador frequente dos irmãos, e a violonista ícone da MPB, Rosinha de Valença.
O repertório abria com “Tudo de Novo”, composição de Caetano que pode figurar na nova turnê. É também o caso de “Fé Cega, Faca Amolada”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, que foi cantada nos Doces Bárbaros e também esteve nos shows de 1978 —que ainda podem render “Muito Romântico”, “O Leãozinho”, esta na voz de Bethânia, “Triste Bahia” ou “Adeus Meu Santo Amaro”, referência à cidade natal.
O Recôncavo Baiano é marca também de “Reconvexo”, uma das mais de 30 canções que o tropicalista fez para a cantora, lançada em 1989 e figurinha carimbada nos shows de ambos. Os irmãos ainda se conectam através de Waly Salomão, um dos poetas favoritos de Bethânia, de quem Caetano colocou melodia em algumas letras, como “Na Gema” e “Mel”.
Ao longo dos anos, Caetano e Bethânia se encontraram em duetos nos álbuns de um ou do outro, e também no palco. Fizeram um show inteiro juntos em 1999, na celebração dos 450 anos de Salvador. Há dois anos, ela se juntou a ele numa live de aniversário.
Hoje, os irmãos lotam estádios às voltas das oito décadas de vida, feito pouco comum na história da música brasileira. E mesmo depois de tanto, diz Macalé, eles ainda têm muito dos meninos que cresceram sob as bênçãos de Dona Canô, experimentaram a arte e o palco com os amigos em Salvador e foram ao Rio para transformar a cultura e o comportamento a nível nacional.
“Na minha cabeça, esses novos shows remetem a uns 60 anos atrás, vendo os dois cantarem juntos”, afirma o músico. “É como se Caetano estivesse de novo tomando conta de Bethânia o que no fim das contas significa deixá-la solta. É muito bonito e especial. São duas histórias maravilhosas. Cada um na sua, mas juntos também.”

A turnê “Caetano e Bethânia” começa neste sábado (3), no Rio de Janeiro, na Rioarena, e segue até o dia 14, 15 e 18 de dezembro, encerrando com três shows em São Paulo, no Allianz Parque. No Rio serão quatro apresentações, nos dias 3, 4, 10 e 11 de agosto.
A dupla vai se apresentar também em Belo Horizonte, no dia 7 de setembro, no Mineirão; em Curitiba, na Pedreira Paulo Leminski, no dia 21 de setembro; em Belém, no dia 29 de setembro, no estádio Mangueirão; em Porto Alegre, no dia 12 de outubro, na Arena do Grêmio; em Recife, no Classic Hall, nos dias 25 e 26 de outubro; em Brasília, no dia 9 de novembro, no Mané Garrincha; em Fortaleza, no estádio Castelão, no dia 16 de novembro; e em Salvador, no dia 30 de novembro, na Fonte Nova.

Há ingressos à venda no Ticketmaster. O valor das entradas vai de R$ 110 a R$ 740.
Turnê ‘Caetano e Bethânia’

Quando: entre 3 de agosto e 18 de dezembro

Onde: Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Belém, Porto Alegre, Recife, Brasília, Fortaleza, Salvador e São Paulo

Preço: de R$ 110 a R$ 740
Autoria Caetano Veloso e Maria Bethânia
Link: https://www.ticketmaster.com.br/event/caetanoebethania

 

*LUCAS BRÊDA – SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)