Leonardo Sanchez
FOLHAPRESS / CANNES, FRANÇA
O Festival de Cannes vai estender novamente seu tapete vermelho a partir desta terça-feira (14), para a 77ª edição da mais prestigiada mostra de cinema do mundo. Não espere que flashes de câmeras e looks exuberantes promovam um momento de escapismo do mundo em turbulência de hoje, porém.
Julgando pelo histórico do evento e pelo noticiário, Cannes não deve ficar indiferente às guerras travadas entre Ucrânia e Rússia ou Israel e Hamas, por exemplo, e tampouco a tragédias ambientais e à polarização política contemporânea.
Nem será preciso esperar por protestos nos arredores do Palácio dos Festivais, onde as sessões acontecem, ou manifestações silenciosas nas lapelas das celebridades. A seleção oficial de filmes, por si só, já tratou de assegurar que o evento terá uma dose considerável de politização.
Entre os 22 longas que competem pela Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, um dos que mais chama a atenção é “The Apprentice”, ou o aprendiz, de Ali Abbasi. Nele, o iraniano-dinamarquês revê a trajetória do ex-presidente americano Donald Trump enquanto empresário, às vésperas de sua tentativa de chegar novamente à Casa Branca.
Também não deve passar incólume o cineasta russo Kirill Serebrennikov, crítico ferrenho de Vladimir Putin, mas que ainda assim sofreu ameaças de boicote na última vez em que passou por ali, há dois anos, com seu retrato de um Tchaikóvski gay. Com “Limonov: The Ballad of Eddie”, ele promete provocar novamente a pátria-mãe, ao narrar a história do poeta e dissidente soviético Eduard Limonov.
Eles disputam o prêmio principal com grifes como Francis Ford Coppola, com seu projeto dos sonhos “Megalopolis”, sobre uma Nova York em reconstrução após um desastre, e David Cronenberg, com “The Shrouds”, sobre uma tecnologia que permite a comunicação com os mortos.
Yorgos Lanthimos e “Tipos de Gentileza”, Paul Schrader e “Oh Canada”, Paolo Sorrentino e “Parthenope”, Michel Hazanavicius e “La Plus Précieuses des Marchandises”, Jia Zhang-Ke e “Caught By the Tides”, Mohammad Rasoulof e “The Seed of the Sacred Fig”, Sean Baker e “Anora” também são destaques, junto com o brasileiro Karim Aïnouz, que leva à Riviera Francesa o thriller erótico “Motel Destino”, filmado no Ceará.
“É importante estar nesse lugar de um grande cinema. Mas não tem pressão, não. Estamos todos juntos. Cannes faz uma coisa muito importante, porque a indústria do audiovisual é muito concentrada nos países de língua inglesa, e com o festival celebramos a diversidade, horizontalizamos o mundo todo”, disse Aïnouz, após o anúncio da seleção.
“A gente vai a Cannes como parte de um movimento, porque o filme é um produto coletivo. Fomos cancelados por quatro anos, então agora tem essa camada de retorno do nosso audiovisual”, afirma ainda, em referência ao apagão de políticas voltadas à área durante o governo Bolsonaro.
ESPECIAIS
Fora da mostra competitiva de longas, nas sessões especiais, “The Invasion” vai enfrentar a Guerra da Ucrânia de forma direta, com o cineasta ucraniano Sergei Loznitsa questionando a invasão de seu país pela Rússia. Mais lateralmente, “La Belle de Gaza” acompanha transexuais palestinas que fogem da Faixa de Gaza rumo a Tel Aviv.
“Lula” é outro filme exibido em caráter especial. É dirigido por Oliver Stone, americano dado à política e antigo amigo do venezuelano Hugo Chávez, que também capturou com suas lentes. O documentário vai acompanhar os anos entre a prisão de Lula, em 2018, e a vitória nas eleições presidenciais de 2022, período no qual o atual chefe do Executivo teria sofrido uma perseguição judicial, nas palavras de Stone.
Há ainda “Moi Aussi”, que traduz o lema do MeToo, em que a atriz e cineasta francesa Judith Godrèche revive o movimento e fala de seus próprios traumas, anos após entrar num relacionamento abusivo com um diretor de cinema 25 anos mais velho – ela tinha 14 à época.
E Cannes tem ainda a sua própria cota de problemas para resolver. Se no ano passado broches em apoio ao coletivo Sous les Écrans, que representa trabalhadores de mostras de cinema, já deram as caras, espere vê-los com mais frequência neste ano. Paira sobre o evento, afinal, a ameaça de uma greve, embora ela pareça, por ora, mais simbólica do que efetiva.
Temas políticos e questões sociais foram impregnados na seleção também como resultado de um Festival de Cannes atingido em cheio pelas greves de Hollywood do ano passado. Com o atraso gerado na produção de vários filmes, os americanos ficaram sem muito o que mostrar nas disputadas galas mais comerciais da programação. Assim, deram espaço para que produções menores ocupassem as vagas que foram de superproduções como “Top Gun: Maverick”, “Elementos” e “Elvis” em anos recentes. O único grande chamariz hollywoodiano desta temporada é “Furiosa”, filme de George Miller que amplia o universo de “Mad Max” e que assegurou a passagem de Anya Taylor-Joy e Chris Hemsworth pelo tapete vermelho.