Talita Duvanel/Agência O Globo/RJ
A cineasta Julia Rezende reuniu 300 figurantes num estúdio para dramatizar uma das cenas mais trágicas da História recente do Brasil: o incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, tema da minissérie ficcional “Todo dia a mesma noite”.
Em outra direção, o jornalista Marcelo Canellas, da TV Globo, acumulou 1,3 mil horas de material (equivalente a 54 dias ininterruptos de gravação) também para contar o que aconteceu naquela noite, e em tantas outras subsequentes, para a série documental “Boate Kiss – A tragédia de Santa Maria”.
Ambas as produções chegam agora ao streaming, dez anos após a tragédia, ocorrida na madrugada de 27 de janeiro de 2013. “Todo dia a mesma noite”, da Netflix, estreia nesta quarta-feira, com cinco episódios. Já a série documental dirigida por Canellas pode ser vista no Globoplay a partir de quinta-feira, também com cinco capítulos.
Apesar dos formatos diferentes, a ideia das duas obras é a mesma: mostrar a luta de famílias e sobreviventes por Justiça. A tragédia deixou 242 mortos e mais de 600 feridos e, até agora, nenhuma pessoa foi responsabilizada.
O júri popular – que havia condenado, em dezembro de 2021, os sócios da Kiss, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus e Luciano Bonilha – foi anulado em agosto de 2022. Não há data para novo julgamento.
“Não haver uma resposta a centenas de pais e mães mostra que, para a nossa sociedade, o esquecimento é uma virtude”, diz Canellas. “Fizemos isso com a ditadura militar, depois houve as tragédias de Mariana, de Brumadinho, do Ninho do Urubu”.
A jornalista Daniela Arbex – autora do livro “Todo dia a mesma noite” (Intrínseca), publicado em 2018 e que serviu de base para a série da Netflix – concorda que voltar ao tema é um exercício para a cidadania:
“É uma recusa ao esquecimento, serve para a gente se repensar como sociedade, repensar a cultura de impunidade e pensar numa cultura de prevenção e de como podemos melhorar o futuro”.
Criada e roteirizada por Gustavo Lipsztein, a produção da Netflix começa a narrativa antes do incêndio. Mostra a vida pregressa de algumas vítimas e de sobreviventes e como tudo convergiu para o que foi a última festa de muitos ali. Por isso, a simulação do incêndio em si não foi a parte mais difícil para Julia Rezende:
“As cenas da boate (cheia) foram as mais emocionantes. A sensação que eu tinha ao ver aquele tanto de vida e aquela juventude, e imaginar que dali a cinco minutos elas estariam fugindo de um incêndio… No set, aquilo me emocionou demais… E me emociona até hoje”, diz.
No elenco da série ficcional, que, depois de mostrar o incêndio, foca no périplo dos pais, estão Debora Lamm, Thelmo Fernandes, Paulo Gorgulho, Bianca Byington e Leonardo Medeiros, entre outros atores.
Uma parte importante da série, diz a diretora, é o uso do som em vez de recorrer a imagens chocantes. “Como narrar uma história como esta? O que mostrar ou não?”, diz Julia. “Tivemos a possibilidade de usar diversas ferramentas narrativas, como o som. Há muitos momentos em que optamos por escutar e não ver”.
A equipe procurou mudar os nomes de todos os envolvidos, apesar de os personagens serem inspirados em pessoas reais. Até a Gurizada Fandangueira foi rebatizada. A boate, no entanto, permaneceu Kiss.
Final sem sentença “é retrato do Brasil”
A série do Globoplay, capitaneada por Canellas, é totalmente calcada na realidade. Gaúcho de Passo Fundo, mas criado em Santa Maria – formado na universidade federal da cidade -, o jornalista traz para a produção até o processo de distanciamento, e depois envolvimento pessoal, com a tragédia.
Ele já morava em Brasília na época e, quando a TV Globo quis mandá-lo para o local, pediu para não ir. “Achei que ia me sentir muito mal. Minha ligação com a cidade é estreita e profunda. Embora não more lá há mais de 30 anos, minha mãe está lá, meus sobrinhos…”, diz o jornalista.
A recusa durou pouco. Uma semana depois de dizer que não queria participar da cobertura, partiu para Santa Maria. Na última década, voltou incontáveis vezes à cidade. “Uma matéria por ano sobre a tragédia, pelo menos, eu fazia para o ‘Fantástico’”, relembra Canellas.
A ideia de um documentário que abordasse o julgamento dos acusados veio da TV Ovo, coletivo audiovisual nascido na periferia de Santa Maria anos antes de a tragédia marcar para sempre a cidade gaúcha. Em parceria, levaram a proposta para o Globoplay e ganharam sinal verde.
Gravaram 29 depoimentos, com pais, mães, sobreviventes e investigadores envolvidos no caso, além de realizarem entrevistas in loco durante os dez dias de julgamento. A edição final ficou, no entanto, diferente do que imaginavam.
“O final que imaginávamos era a sentença, uma resposta da Justiça”, diz o jornalista. “Mas o desfecho da nossa produção é o retrato do Brasil, de como o Estado e a sociedade lidam com suas dores”.
Baseada no livro da jornalista Daniela Arbex, publicado cinco anos após a tragédia, “Todo dia a mesma noite”, da Netflix, não chega a mostrar o julgamento dos acusados. O principal recorte é mesmo o drama das famílias e de alguns sobreviventes.
“No documentário, sempre há um pós-fato, são pessoas sendo entrevistadas, que sabem o que o aconteceu”, diz o roteirista Gustavo Lipsztein. “Na ficção, conseguimos ‘ver’ o pré-fato, entrar dentro da história de outra maneira”, completa.
No caso de “Boate Kiss – A tragédia de Santa Maria”, do Globoplay, a pesquisa de Marcelo Canellas não se limitou a Santa Maria e se estendeu até Buenos Aires. Na capital argentina, ele narra a história de outro incêndio, na casa noturna República Cromañón, que matou 194 pessoas em 2004.
O roteiro foi semelhante ao do Brasil: superlotação, artefatos pirotécnicos, falta de fiscalização. O desfecho, no entanto, diferente: 28 pessoas foram responsabilizadas criminalmente e 14, presas.
“A Cromañón foi uma espécie de manual do que aconteceria com a Kiss. A grande diferença é que lá agentes públicos foram punidos e presos”, diz Canellas. “Até o prefeito de Buenos Aires foi destituído do processo político”.
A passagem dos anos, como mostram Canellas e a produção da Netflix, não necessariamente atenua o calvário das famílias. Elas sofrem com a inação do poder público e a morosidade da Justiça, mas também com certa indiferença de alguns conterrâneos, que hoje não gostariam de ver o nome da cidade tão associado à tragédia.
“Vejo claramente a mudança de percepção. No início, foi uma comoção mundial, a cidade estava 100% mobilizada”, diz o jornalista. “Mas o tempo de quem sofre não é o mesmo das outras pessoas”.