TEXTO: Lúcia Monteiro/FOLHAPRESS
Apropriar-se da crítica, incorporá-la e vendê-la com a mercadoria. Embora bem manjada, essa artimanha do capitalismo costuma funcionar. É mais ou menos o que acontece com a operação “Barbie”. Já faz tempo que a boneca de seios volumosos, cintura fina e pernas longas recebe ataques duros por promover um padrão de beleza inatingível, racista.
Porque tais críticas repercutem de forma negativa nas vendas, a resposta dos fabricantes vem sendo, há décadas, diversificar sua linha, de modo a criar modelos com as mais variadas fisionomias e ocupações, para além da loira sensual.
O elenco do filme dirigido por Greta Gerwig [de “Lady Bird”, “Frances Ha” e “Ruído Branco”] traduz essa fuga do estereótipo: há Barbies negras, asiáticas e com deficiência; médica, sereia, presidente, vencedora do Nobel. Na Barbieland, todas as garotas têm o mesmo nome – Barbie, claro -, assim como todos os garotos se chamam Ken. (Há exceções com nomes diferentes, logo voltaremos a elas). Alguns, porém, são mais iguais que os outros. A diversidade não envolve os papéis de protagonista, os loiríssimos Margot Robbie e Ryan Gosling.
Vamos à sinopse do filme, que não só não teme o clichê como o abraça. Conforme explica a narração logo no início, na Barbieland, as Barbies “podem ser o que quiserem” e, graças a elas, questões como feminismo e igualdade foram resolvidas. “Ao menos isso é o que as Barbies pensam, pois elas vivem em Barbieland”.
Tudo muito perfeito até que, misteriosamente, a Barbie estereótipo interpretada por Robbie pensa na morte. Do nada, seu calcanhar (sempre levantado devido aos saltos altos) toca o solo e uma leve celulite acomete-lhe a coxa. Na tentativa de que as coisas voltem a ser como sempre foram, ela deixa sua mansão em busca do mundo real, onde vive a menina real que provavelmente imaginou essas maluquices.
É no mundo real e, mais especificamente, no quartel-general da Mattel, a fabricante do brinquedo, que se revelam o alto teor de hipocrisia e oportunismo de narrativas pseudo-inclusivas de nosso tempo. Numa reunião de cúpula em que todos são homens engravatados, o presidente fala que a alma do negócio é a “agência feminina”. Faz referência à capacidade de fazer escolhas com independência e liberdade – mas demonstra que quem decide são os machos.
Sim, é para rir, e nós rimos. Mas há boas chances de ser um riso nervoso. Que não entendam mal: fica evidente que se trata de uma crítica. Mas talvez não seja apenas crítica. De fato, o filme parece ser uma alfinetada não só nos fabricantes da boneca idealizada por Ruth Handler nos anos 1950, mas mais amplamente ao capitalismo e ao patriarcado. De acordo com esse viés, no mundo feminino das Barbies sempre despertou mais interesse do que o dos Kens, fadados a papéis coadjuvantes. A boneca e seus acessórios ajudariam as garotas a se empoderarem.
Sim, há piadas muito boas. Como quando a Barbie estereotípica quase chora ao conceber que podem acusá-la de fascista. Sim, o final emociona e empolga as espectadoras – não vou dar spoiler, mas adianto que há conversas pirandellianas entre criadoras e criatura.
Infelizmente, “Barbie” é também, em muitos momentos, a própria encarnação daquilo que critica. Arrancam gargalhadas as cenas com bonecas e bonecos da Mattel que saíram de linha. É o caso de Allan, criado nos anos 1960 e que não chegou a emplacar, pintado como o único ser não hétero de Barbieland. E de Midge, a Barbie grávida, também invenção da década de 1960 que deixou de ser fabricada por não vender.
Feitas todas essas ressalvas, preciso reconhecer: é impossível não se envolver, não se divertir, não se comover com “Barbie”. O filme esbanja inteligência nos diálogos, tem um roteiro muito redondo e a performance do elenco é irretocável (ainda que, de fato, num registro estereotipado).
Ou seja, um produto bem acabado, vocacionado para o sucesso, não só do filme, mas de dezenas de modelos da boneca, novos ou vintages, para crianças e adultos.