
O escritor e ex-seminarista paraense Brendo Silva, especialista em sexualidade e religião, acaba de lançar o livro “A vida secreta dos padres gays”, onde expõe bastidores do clero católico. Segundo ele, o objetivo é iniciar o debate sobre a homossexualidade do clero no Brasil, sem que o texto seja enviesado pela própria Igreja.
A publicação reúne depoimentos de 16 homens gays e heterossexuais que passaram por seminários, conventos e casas paroquiais, ou que ainda se encontram nessas instituições. Entre eles, há padres operantes, padres que não são mais atuantes, ex-seminaristas e um seminarista, de diferentes congregações e dioceses.
O livro é dividido em quatro partes: um relato autobiográfico, onde o autor conta a origem da sua “vocação” no interior do Pará; uma pesquisa bibliográfica e análise de fontes jornalísticas, onde são analisadas notícias e reportagens sobre o tema, com casos históricos de padres gays, como o do padre Pinto, da Bahia; entrevistas com 14 padres, seminaristas e ex-seminaristas gays e dois heterossexuais; e a fala de especialistas sobre como a imprensa trata o tema, além da conclusão do autor.
“Parti de uma proposta autobiográfica, pois já imaginava que seria quase impossível falar com padres gays como fontes para o livro. Porém, me surpreendi. Ao passo que consegui falar com um padre, depois ele me indicou outro e assim por diante. Alguns deles não quiseram participar do livro enquanto entrevistados, mas foram fonte de apoio”, contou o autor, que destacou que ouvir ex-seminaristas para a construção do livro já foi bem mais fácil.
“Também entrevistei um seminarista que agora já é padre, foi ordenado. Então, o que surgiu como uma autobiografia tornou-se um trabalho mais amplo. Penso ser importante dar voz a esses padres e seminaristas gays silenciados pela Igreja”, destacou o autor, que acredita ser necessário que o tema seja discutido por toda a sociedade, pela Academia, por jornalistas, psicólogos, sexólogos e pessoas interessadas, pois, em seu ponto de vista, a Igreja Católica influencia nossa sociedade, e a sexualidade é um tema central em decisões político-ideológicas.
Para abrir a discussão, o autor parte da sua própria experiência, com um longo relato autobiográfico em que alguns locais e nomes são omitidos para preservar a identidade de pessoas. Num segundo momento, faz um levantamento de estudos iniciados em outras partes do mundo em paralelo a relatos de alguns casos expostos.
O autor, que é natural de Belém, teve sua formação marcada pela vivência religiosa, atuando como coroinha e seminarista por mais de dez anos. É pedagogo, jornalista em formação e pós-graduado em Religião e em Sexualidade. E foi ao ingressar no seminário que Brendo percebeu que a manifestação da homossexualidade era comum entre os colegas de todos os níveis de hierarquia. Segundo o autor, o cenário se dá pelo fato de a Igreja, historicamente, ser percebida como refúgio para jovens gays que, em sociedades homofóbicas, encontram no sacerdócio uma maneira de evitar o julgamento social e alcançar prestígio.
O caderno Você conversou com o autor sobre o livro. Na entrevista a seguir, ele dá mais detalhes sobre o processo de construção da publicação, casos de assédio e o propósito do lançamento.
Entrevista com Brendo Silva
PERGUNTA – Como surgiu a ideia de escrever “A vida secreta dos padres gays – Sexualidade e poder no coração da Igreja”?
RESPOSTA- Surgiu da necessidade de fomentar o debate sobre a homossexualidade no clero, comum e rotineira, mas ignorada. A ideia surgiu após minha saída, por incentivo de professores nas faculdades em que estudei.
P Como foi o teu processo criativo para a construção dessa publicação?
R Parti de uma proposta autobiográfica, pois já imaginava que seria quase impossível falar com padres gays como fontes para o livro. Porém, me surpreendi. Ao passo que consegui falar com um padre, depois ele me indicou outro e assim por diante. Alguns deles não quiseram participar do livro enquanto entrevistados, mas foram fonte de apoio. Com ex-seminaristas já foi um pouco mais fácil e também entrevistei um seminarista que agora já é padre, foi ordenado. Então, o que surgiu como uma autobiografia tornou-se um trabalho mais amplo. Penso ser importante dar voz a esses padres e seminaristas gays silenciados pela Igreja.
P Como está dividida a publicação?
R Basicamente o livro está dividido em quatro partes. A primeira é um relato autobiográfico onde conto a origem da minha “vocação” no interior do Pará. Na segunda parte, tem pesquisa bibliográfica e análise de fontes jornalísticas, em que analisei dezenas notícias e reportagens sobre o tema e trouxe casos históricos de padres gays, como o do padre Pinto, da Bahia. Na parte dois também trouxe a maior parte da bibliografia sobre o tema para o debate. A terceira parte são as entrevistas com 14 padres, seminaristas e ex-seminaristas gays e dois heterossexuais. Na última parte, trouxe especialistas, como a imprensa trata o tema e a conclusão. Também há uma bibliografia riquíssima e detalhada.
P Conte mais sobre o processo de construção dessa obra.
R Para a escrita do livro entrevistei muitas pessoas, inclusive viajei para encontrá-las pessoalmente. Li dezenas de livros, realizei pesquisas, li centenas de matérias em jornais e revistas antigas, visitei [a cidade de] Aparecida para observação, etc. Também tive apoio de professora e universitários para correções. Foi desafiante, mas gratificante. Acabei por descobrir que era mais complexo e generalizado do que até eu mesmo imaginava.
P Num trecho do livro diz: “A impressão dada em algumas casas religiosas é de que elas são casas gays, ou seja, compostas ou por uma totalidade ou por uma expressiva maioria de padres e irmãos homossexuais”. Conta um pouco sobre essa realidade que está detalhada no livro e como foi viver isso.
R Meu livro é uma tentativa em responder essa pergunta. Descobri que gays estão no sacerdócio católico não somente para se esconder, mas por vários motivos. Um deles é a identificação com a arte e liturgia católicas e também por uma questão de prestígio social que o sacerdócio dá. Viver essa realidade de perto causava uma mistura de sensações: me culpava, mas me sentia em ‘casa’. Todo mundo ali se entendia…
P Qual o teu propósito com o livro?
R Pautar a sexualidade dos homens da Igreja. A Igreja sempre pautou ou tentou pautar a sexualidade das pessoas, agora tento fazer o exercício inverso. Ora, se nem a hierarquia da Igreja vive os votos (há vários casos de cardeais e bispos gays expostos pela mídia), por que ela tenta a todo momento pautar a sexualidade da sociedade?”
P O livro também quer dar voz a essas pessoas?
R O livro pretende também dar voz aos padres gays (a maioria dos padres), criar pontes para o diálogo com a instituição e atacar não pessoas físicas, mas a hipocrisia da instituição. Meu livro pretende não expor CPFs, mas a Igreja. Ele pretende tirar a Igreja do armário.
P Casos de assédio envolvendo padres também são comuns? Falas sobre isso também na publicação?
R Infelizmente comum. Trato, sim, no meu livro. Eu fui assediado no seminário por um padre, dentro do confessionário, no momento da confissão. Isso já lá no interior de São Paulo. Esse mesmo padre depois foi transferido para a Ilha do Marajó.
P Qual a tua relação com a igreja hoje e como o livro vem sendo visto?
R Hoje, sou católico apenas culturalmente, mas não professo mais a fé. Ainda tenho admiração por alguns aspectos, inclusive convivo com amigos padres, freiras…
P Como tem sido a receptividade do livro?
R O livro teve uma reação positiva de quem leu até agora. A linguagem é jornalística e acessível, uso muitas fontes comprovando o que falo. Então, pela realidade e riqueza de fontes, ele tem sido bem aceito por quem leu. Muitos dizem que se emocionam, inclusive os padres que estão lendo.
P Mas também tem reações não positivas?
R As pessoas que me atacam e até me ameaçam de morte – já abri B.O. [boletim de ocorrência] – é porque realmente não leram o livro. É uma obra robusta, fundamentada e não apenas um “achismo” da minha parte. É minha vivência aprofundada com documentos e centenas de outras fontes. Convido todos a lerem a obra. Para criticar, é importante conhecer. Não gastaria meus meses e sanidade mental em prol de uma mentira. Nada ali é inventado, na verdade é amenizado. Convido todos ao debate, pois muitas das vezes escutamos que religião não se discute, mas é o que mais deveríamos discutir. É ela quem molda a cultura.
A Construção do Livro e a Realidade da Igreja
P A construção do livro começou no Pará?
R Visitei muitos seminários e paróquias do estado e em todos esses locais a maioria dos padres e seminaristas era gay. Alguns desses seminaristas são padres atualmente, com cargos altos em congregações importantes em Belém. Triste constatar que muitos deles apoiam discursos moralistas, quando, na verdade, possuem uma vida dupla.
P Podes falar de algum caso citado no livro?
R Cito no livro um seminarista barnabita que contraiu HIV dentro do seminário deles em Benevides, só para exemplificar.