Aline Monteiro, Editora do Você
No Carnaval deste 2024, a Acadêmicos da Grande Rio entrará na Sapucaí defendendo um enredo que fala da onça como símbolo de luta e resistência. Sob a criação dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, a escola se baseia na mitologia Tupinambá, que vê a onça como um símbolo divino e poderoso, para contar como isso se reflete no cenário artístico e cultural.
É nesse contexto que a artista paraense Rafa Bqueer, amante e cria do Carnaval, e que há quatro anos performa como destaque da escola carioca, terá uma ala inspirada em sua drag Uhura, intitulada por ela como “a Panterona da Amazônia”. A “felina” que estreou há dez anos na festa Noite Suja, do coletivo drag paraense Themonias, também inspirou versos do samba da escola – “É cabocla e mão torta/ pé de boi que o chão recorta/ travestido de pantera…” – que emocionaram Bqueer. “É vida sendo traduzida em outra arte, em música. A onça se traveste de pantera. E essa onça travestida de pantera sou eu”, diz.
Rafa é artista reconhecida e premiada nacionalmente, com participação em exposições nacionais e internacionais, e obras em coleções como a do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM). Seus trabalhos em performance, que dialogam com a videoarte e a fotografia, refletem sobre gênero, sexualidade, decolonialidade e afro-futurismo. Mas não estão desconectadas de suas performances na arte drag, nem de sua relação com o Carnaval, que ela identifica como grande paixão. Na entrevista a seguir, a artista fala da emoção da homenagem, de como o Carnaval mora em seu coração, arte drag, e como isso tudo se mistura sem pudores.
P Queria que começasses falando dessa relação entre a escola e a tua obra.
R Esse é o meu quarto carnaval na Grande Rio como destaque. Mas em Belém eu já tinha uma trajetória no carnaval paraense. Comecei em 2008 como assistente de dois importantes carnavalescos paraenses, Jean Negrão e Cláudio Rego de Miranda, dois artistas muito talentosos, pela paixão de criar fantasia, de pensar carros alegóricos. Poucas pessoas sabem que o Carnaval é essa paixão talvez inicial, o início de tudo que faço hoje. É esse lugar potente de criação. E a minha primeira vinda para o Rio de Janeiro, em 2013, foi pelo desejo de conhecer o Carnaval do Rio. Em 2014, desfilo pela primeira vez na Marquês de Sapucaí, sendo assistente inclusive de um carnavalesco do Império Serrano. Para além de uma trajetória nas artes visuais e na arte drag, sendo eu uma artista que pertence ao coletivo paraense das Themônias, um coletivo LGBT muito importante para a cena de Belém, o Carnaval faz parte de tudo também. Em 2024 faço 10 anos desfilando na Marquês de Sapucaí. Os carnavalescos da Grande Rio, o Gabriel Haddad e o Leonardo Bora, são grandes amigos, e esse ano o enredo é a onça pintada, como um símbolo de luta ancestral e contemporânea, incluindo a perspectiva Tupinambá. Ao mesmo tempo, no final do desfile faz uma homenagem a artistas contemporâneas que têm a onça como um símbolo de luta, de retomada, de política. A homenagem que vou receber na Grande Rio é na ala LGBT, uma homenagem à minha atuação como artista visual e drag. Toda a visualidade da ala é inspirada em cores neon e estampas de onça, que trago na estética da minha drag muito forte, com essa inspiração da Gabi Amarantos, das aparelhagens de tecnolobrega, do uso de LEDs com cores fortes. Para mim é uma realização, uma alegria muito grande, porque a gente sabe que a cultura popular no Brasil, é um lugar de muita resistência e luta frente a outros tipos de arte. E para mim é muito importante esse reconhecimento como sambista. Acho muito importante me entender como uma pessoa que faz parte do mundo do samba, não só no dia do desfile na Sapucaí, mas durante o ano inteiro.
P Tu tens um trabalho reconhecido nas artes visuais, inclusive internacionalmente. E estás falando sobre a resistência da arte popular. Existe uma riqueza nessas narrativas, nesse espetáculo plástico que é o Carnaval, a que talvez nem sempre a gente dê a dimensão correta. Como te sentes sobre isso?
R Essa consciência eu tive desde sempre, de que a cultura popular é um lugar rico de pesquisa e conhecimento, só que é um lugar muito ligado à periferia, principalmente a escola de samba no Brasil. O samba é preto, vem dos terreiros, dos quilombos. Existe ali toda uma luta contra o racismo. Eu como pessoa preta, como uma pessoa trans não binária, que reconheço esse meu lugar de dissidência amazônida, sempre tive essa consciência de que o samba é um lugar de pertencimento para mim. Ele não é um trabalho, ele é um lugar onde eu existo como sambista, como uma pessoa que dá continuidade, por exemplo, ao que a minha avó é para mim, uma pessoa que sempre foi apaixonada pelo samba e que sempre viu no samba uma forma de construção de narrativa da cultura afro-brasileira. Se nas artes visuais eu tenho toda uma estratégia de me infiltrar e hackear o sistema dos museus e galerias, eu acho que o samba é esse lugar que me dá o suporte intelectual, o suporte humano, porque dentro das escolas a gente conhece uma diversidade de compositores, de pessoas trans, de pessoas LGBTs que estão na produção desse trabalho. Acho muito importante olhar para os desfiles de escola de samba como uma construção e produção de conhecimento. Não é só festa, não é só brincadeira. É uma perpetuação de um conhecimento que é de vó para mãe, de mãe para filho. E acho que essa consciência existe na minha família e nessa paixão com o carnaval do Rio de Janeiro. Por mais que eu não exerça hoje a função de carnavalesca, talvez fosse a minha paixão de adolescente. Mas nunca deixei o carnaval como algo em segundo plano dentro da minha produção artística. Tanto que muitas fotoperformances, muitos vídeos, muitos trabalhos de arte visual que eu produzo, têm diretamente uma estética muito carnavalesca, que introduz o brilho, o figurino, a reutilização de fantasias, de desfiles, de bordados, materiais esses que inclusive são olhados muitas vezes pelas instituições ou por colecionadores como algo menor. Então, levar essa visualidade para as galerias de arte é também um posicionamento político, porque você confronta diretamente o que é considerado intelectual, elegante, toda essa perspectiva visual de onde se constrói uma arte.
P E para além desse lugar de resistência, qual o sentido que tu vês do Carnaval simbolicamente para a cultura?
R O Carnaval é um lugar de liberdade, de experimentação artística. É onde muitas artistas trans LGBTs conseguem atuar produzindo figurinos, fantasias, maquiagem. É uma festa, e eu gosto de pensar a festa como produção política, como encontro, como coletividade. O meu trabalho também tem muito isso, olhar para o Carnaval, para os coletivos de drags e boates, para as festas de aparelhagem. As festas, para mim, e principalmente as festas periféricas, o que tem origem na cultura afro-indígena, afro-brasileira, tem um lugar de resistência, de perpetuação de conhecimento, seja na dança, na música, na construção de fantasias, e sobretudo nos temas. A gente tem tantos temas que são tão ricos e que não são estudados nas escolas. Acho que o Carnaval vem, nos últimos anos, pautando muito isso. Por exemplo, o Zumbi dos Palmares, quando foi enredo no Salgueiro nos anos 1960, foi um marco histórico dentro dessa perspectiva intelectual de reconhecimento desses ícones da resistência e da luta preta no Brasil. Ou por exemplo, o Exu, que foi enredo campeão, primeiro título da Grande Rio, de 2022, e eu estive lá como destaque. O carnaval das escolas de samba é, para mim, totalmente essa perspectiva do encontro de uma produção coletiva, onde artistas trocam muito, bailarinos, cenógrafos, designers. Eu, como artista da performance, performo em cima de um carro alegórico e isso é extremamente intenso e visceral, poder estar a dez metros de altura. Este ano, eu desfilo em três escolas, na Unidos da Ponte, que vai falar sobre o dendê, na sexta-feira de Carnaval, do segundo grupo, que é a Série Ouro do Rio; no sábado, segunda noite do segundo grupo, da Série Ouro, no Arranco do Engenho de Dentro, que vai fazer um enredo sobre a Nise da Silveira; e no sábado, quarta escola da noite, a Grande Rio, falando da onça, e fazendo essa homenagem para mim. E é legal, eu gosto de ser uma artista multifacetada, porque realmente quem me acompanha mais no ambiente das artes visuais, nas instituições, não acompanha muito o que eu produzo no Carnaval, e também muitas vezes não acompanha o que eu produzo como drag. Para mim faz muito sentido porque essas três artes se transbordam na minha produção.
P O que podes adiantar sobre essa ala? Algum detalhe que possa ser divulgado?
R É a ala LGBT na escola. Tem uma importância porque a Grande Rio tem uma ala LGBT muito forte, tem várias musas trans na escola. E quando eles falaram que seria uma homenagem à Uhura, minha drag Themonia, porque digo que sou a “panterona da Amazônia”, remete tanto a mim como artistas como por exemplo Márcia Pantera, drag de São Paulo. Sim, onças e felinas são referências para nós, que somos artistas pretas, dissidentes. Essa ala vem com uma visualidade que considero muito paraense, das festas de aparelhagem, da Gaby Amarantos, o uso de cores neon, de mix de estampas animal print, também tem um colorido, algo muito forte da ala. Essa estampa de onça neon é uma característica da minha produção artística drag. A pessoa que fez a sessão de fotografias fez uma maquiagem muito neon, muito forte e eu adoro, porque o uso da cor é uma escolha política também e acho que a periferia de Belém vem trazendo essa transformação, essa identidade pelo uso de cores, de brilho. Isso para mim dialoga diretamente com a estética da periferia de Belém.
P Achas que a gente está num momento em que se abre mais os olhos para a riqueza de informação que vem das periferias?
R Eu acho que a gente vive um momento histórico de reparação, acho que essa é a palavra, de reparação histórica para os corpos e artistas dissidentes. A internet, essa expansão da comunicação dos conteúdos e ao mesmo tempo essa visibilidade de poder reivindicar, falar e disseminar conteúdos, criou, ao meu ver, uma relação de obrigação das instituições de pluralizar os seus processos. Quando falo de instituição, vai desde os museus e galerias de arte até as escolas de samba. E a gente tem que entender que todas essas instituições, elas têm o seu processo histórico brasileiro fundado de um colonialismo, em perspectivas eurocêntricas. Então, essas instituições estão olhando para a produção afro-brasileira, periférica, perspectivas trans, indígenas, e não porque querem também, mas porque são pressionadas e, ao mesmo tempo, tem a questão do consumo. Existe a perspectiva da periferia que consome e quer se ver. Quer se ver na televisão, nos meios de comunicação, quer ter os seus direitos à universidade. E a universidade, nos últimos anos, tem ampliado essas perspectivas com as cotas para as pessoas de escolas públicas, pessoas pretas, indígenas, trans. Acho que a gente vive uma revolução que é o resultado de uma luta secular. Não é algo que vem de agora, é uma luta secular amazônica também.