Elias Pinto
A literatura paraense esteve muito bem representada desde que o primeiro exemplar do DIÁRIO DO PARÁ chegou às bancas, em 22 de agosto de 1982, até os dias de hoje. Grandes lançamentos não faltaram no período.
Não vou me demorar em pesquisas, em consultas rigorosas (mesmo porque minha biblioteca, fonte para essas informações, são veredas que se bifurcam inencontráveis nesse caos navegado de volumes). A memória do colunista, ainda que falha, será minha conselheira – está sedimentado em seu escaninho o que se fixou das leituras nativas ao longo dos últimos 41 anos.
Nessas quatro décadas, alguns autores, de pronto, se sobressaem no, sejamos francos, ainda escasso universo da literatura paraense. E o que digo agora não se opõe, ou se põe em paradoxo, ao afirmado no primeiro parágrafo. Escassa, mas bem representada.
Haroldo Maranhão e Vicente Cecim são nomes, na ficção, que me vêm logo à tona nessas revisitações literárias ao tempo em foco. Se o melhor da produção de contos do primeiro já havia sido publicado antes de 1982, seus grandes romances vieram em seguida, e numa sucessão de narrativas fascinantes.
Já em 1982, ano de nascimento do DIÁRIO, saiu-lhe o alumbramento em prosa que é “O Tetraneto Del-Rei”, suma satírica dos primórdios da colonização do Brasil. Num delicioso acento quinhentista, o Torto protagoniza, entre idas e venidas – como que fugitivo de páginas nunca dantes escritas n’“Os Lusíadas” – esta invulgar e inusitada obra-prima da invenção, da linguagem e do humor. Certamente não foi à toa que o romance recebeu, antes de ser publicado, o Prêmio Guimarães Rosa de 1980, a primeira e única vez, salvo engano, que tal distinção foi concedida. Prêmio e premiado se mereceram, esteja fiado nesta assertiva, estimado leitor.
LEITURA ESPOLETADA
No ano seguinte, com “Os Anões” (e outro prêmio, o José Lins do Rego), Haroldo volta sua carga para os dias que então corriam, e corriam mal: além da estatura física do protagonista, Palmar Demisso Colonho, um metro e quarenta e cinco centímetros de altura (mas um gigante em ressentimento), o título do romance se justifica pela estatura – não mensurada no tamanho físico, apesar da média dos habitantes locais – dos demais personagens, portadores de indelével atrofia moral. Todos – mais ou menos testas de ferro, mas invariavelmente arrivistas – gravitam, amesquinhados, em torno do presidente de uma multinacional na Amazônia, a Janari, imperiosamente comandada por Mr. Wolfgang. Qualquer semelhança (gritante) com outro grande projeto não será mera coincidência.
Ao tornar a reler o romance, espoletei-me em gargalhadas, como se, desvirginando-lhe as páginas, inédita fosse a leitura – experimentem ir direto ao capítulo “Um gato urgente!” para ter uma amostra dessa militância rabelaisiana maranhã. Claro, isso para os felizardos proprietários de um exemplar, já que nunca mais se reeditou “Os Anões”.
Depois de tanto riso ao rés do chão dos ananicados habitantes da planície belenense, o final do livro nos deixa travados – não exatamente como certos outros travamentos em fila. É que, na visão alada que um dos personagens, o piloto “Espanhol” Hernández Ola Giratória, a bordo de um helicóptero ele mira e divisa, altaneiro, embaixo, as levas de anões, os regimentos de anões, os exércitos de anões, anões de quepe e anões paisanos, anões obesos e anões caquéticos, anões de beca e anões de boca, anões calvos e anões papalvos, todos anões. Atualíssima visão, que cabe muito bem ao julgamento (literal) que ora se processa dos tempos de Bolsonaro.
Não quero me estender a falar sobre Haroldo Maranhão até o esgotamento deste texto, mas não posso deixar de citar “Rio de Raivas” (1987), “Cabelos no Coração” (1990, quando, pessoalmente, conheci o autor) e “Memorial do Fim” (1991), ilustre trinca de livros absolutamente indispensáveis a uma biblioteca paraense.
Se “Rio de Raivas” é o acerto de contas do autor com a sua cidade, o mais impiedoso e benquerente retrato de Belém, se “Cabelos no Coração” é uma jubilosa epopeia luso-acaraense em torno do ciclópico Filippe Alberto Patroni Martins Maciel Parente, “Memorial do Fim: A Morte de Machado de Assis” é a mais justa homenagem ao Machado de Assis que finando se vai, in extremis. “Memorial do Fim”, por vias assim não diria oblíquas nem dissimuladas, mas parentais em bruxaria, é o “Memorial de Aires” de Haroldo Maranhão. E espero que vocês me entendam. E se não entenderem, que se deem por desentendidos.
Haroldo Maranhão, o Bruxo da Praia do Flamengo (onde morou no Rio de Janeiro), morreu em 2004. Lamentável é que um dos maiores nomes da literatura paraense é um autor praticamente inédito para as novas e não tão novas gerações. Nenhum de seus romances pode ser encontrado, hoje, nas livrarias da cidade. Ao menos tive a oportunidade de orientar a reedição, num agosto de quatro anos atrás, de suas crônicas reunidas no delicioso “Flauta de Bambu” (que era então um item raro), publicado pela Imprensa Oficial do Estado do Pará.
ANDARA DE ESPANTOS
Em 1983, um ano depois de o DIÁRIO começar a circular, o escritor Vicente Franz Cecim lançou, em 1983, o “Manifesto Curau/Flagrados em delito contra a noite”, em que propunha “a insurreição poética da Amazônia contra as deformações impostas à região pelo colonizador”.
Antes, em 1979, com “A Asa e a Serpente”, Cecim abria os portões de uma Amazônia transfigurada em Andara, Amazônia-uroboro, como a cobra mitológica que se autodevora, papando-se pelo rabo. Uma Amazônia, agora região-metáfora, libertada de seu pesado lastro fundiário, reinventada em espantos, epifanias.
Desculpe-me o leitor, mas não há como falar da obra de Vicente Cecim sem se deixar – camaleonicamente, Zelig in-fólio – contaminar por seus escritos.
Foi ao longo das décadas de 1980 e 1990 que a Andara vicentina se consumou, derramando-se além-fronteiras. Em 1988, veio à luz (entre musgos e miragens) “Viagem a Andara, o Livro Invisível”. Reunião dos sete primeiros livros visíveis de Andara, a obra recebeu o Grande Prêmio de Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte, a APCA.
Em 1995, o romancista belenense estampou-se em “Silencioso Como o Paraíso”, que traz quatro livros individuais de Andara, a que se seguiu, em 2001, quando a invenção de Andara completou 22 anos, o livro “Ó serdespanto”, inaugurado em edição portuguesa, para o espanto, maravilhado, da crítica lusitana, que descobria essa Andara aquém-mar, poética fluvial, roman-fleuve papaxibé, de invisibilidade cintilante, vagalumeante, ora submersa, ora alçando-se em febres terçãs.
Talvez o leitor sinta-se sem referências terrenas para situar Andara, leitura órfã de gênero, desbussolada suma amazônica. Eu próprio, confesso, tenho lido meus Cecims como quem lê poemas, aos saltos, transliterado. Acho que o próprio Cecim não consideraria de todo mal essa leitura intermitente, devaneante, de bosquejo em bosquejo. Afinal, “Viagem a Andara” lê-se como um poema em prosa ca(n)dente.
Vicente Franz Cecim se despediu em 2021, mas deixou-nos como legado as mais de 1200 páginas da bela edição (de 2020), em obra in totum reunida, de “Viagem a Andara oO livro invisível”. É Andara bíblica. Não devemos ler como narrativa que se encerra em um livro com protocolares início, meio e fim – mas como poesia sem fronteiras. Poesia em prosa? Banal demais para assim resumir. É preciso digerir a invisibilidade de sua obra, que assim continua para o Brasil – basta ver a escassa repercussão da partida de um autor que era então o mais importante da Amazônia, de que sua obra se nutria, dialogava. “Se não existisse a Amazônia e não se desse o acontecimento fatal de eu ter nascido nela, não houvesse Andara.”
Ainda entre os romances, a grata renovação veio com a boa acolhida de Edyr Augusto não só entre a crítica brasileira (afinal, o Pará é quase um país estrangeiro às bandas de lá do mapa nacional), mas também no estrangeiro à vera, além-mar. Na terra de Marcel Proust (a mesma de Alain Prost, para os menos íntimos das letras) & Roland Barthes, “Os Éguas” (com o título de “Belém”) recebeu, em 2015, o prêmio Caméléon de melhor romance estrangeiro. E ainda há pouco o autor recebeu, mais um paraense, o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte pelo livro de contos “Eu já morri”.
E se ao ser fundado o DIÁRIO já não encontrou Dalcídio Jurandir entre nós, morto o grande criador do Ciclo do Extremo Norte em 1979, nesses 41 anos passados, e depois de viver um longo período de limbo editorial, Dalcídio retornou às livrarias graças à iniciativa da heroica editora bragantina Pará.grafo, que agregou aos relançamentos novo aparato crítico e inspirada apresentação gráfica. O lamento foi saber que a Pará.grafo fechou as portas, mas deixou fecundo exemplo. O autor de “Belém do Grão-Pará” teve ainda este que é considerado seu melhor romance reconduzido aos leitores numa coedição da Fundação Casa de Rui Barbosa e Editora da Universidade Federal do Pará.
CELEBRAÇÃO POÉTICA
Para não dizer que não falei de poesia propriamente versejada, poderia, claro, lembrar de Max Martins (1926-2009), que, se teve um tanto do seu melhor dado a público nos anos 60 e 70, outro tanto veio depois de 1982, como “Caminho do Marahu” (1983), “60/35” (1985). Juntando essas duas partes, a antológica antologia “Não Para Consolar” (1991), belo projeto gráfico de Age de Carvalho (outro nome a citar), livro-centelha, que não para de emitir luz, pulsações.
Se Max nos deixou em 2009, a compensação foi poder reencontrar o nosso mais estimado poeta, Il miglior fabbro, o melhor artesão da nossa poesia, em grande estilo. Com a publicação de “O Estranho”, “Caminho de Marahu” e “Colmando a Lacuna”, a Editora da Universidade Federal do Pará (ed.ufpa) deu início, em 2015, à reedição da poesia de Max da Rocha Martins.
Organizada por Age de Carvalho, a “Coleção Max Martins: Poesia Completa” nasceu como o mais importante evento editorial, no domínio da poesia, já surgido entre nós. Primeiro, pela qualidade editorial do projeto. Segundo, por nos devolver Max livro a livro, recompondo-lhe a obra. Em 11 volumes, a série contemplou até um título inédito do autor.
A série reinaugura, reinstala a conversação dos dois poetas paraenses, mestre e discípulo que não guardam lugar, posto, hierarquia. O que temos é a retomada de uma parceria. Melhor, de um diálogo poético-existencial (como se pode acompanhar em “A Fala entre Parêntesis”, de Max & Age). Mais que herdeiro, Age de Carvalho se tornou, à jusante de Max (“ou à montante do tempo”), uma das mais intensas das nossas vozes poéticas atuais.
João de Jesus Paes Loureiro também publicou, nesse período, o incontornável “Obras Reunidas”, em quatro volumes. Publicado em 2011, seu primeiro romance. “Café Central: O Tempo Submerso nos Espelhos”, que entrelaça ficção, história pessoal e as circunstâncias políticas de 1964, ano do Golpe Militar, não teve a atenção que merecia. Publicou, em seguida, “Encantarias da Palavra”: para ser degustado aos poucos, é um dos melhores livros de poesia do João, que prossegue lançando novos títulos.
Por fim mas não menos importante, e antes que o espaço me acabe, tivemos em 2020 o centenário de nascimento de outro notável poeta paraense, Ruy Barata. Por causa da pandemia, foi celebrado em junho passado, com a atribuição a vários destaques em suas áreas com o prêmio multicultural que leva o nome do poeta de “O Nativo de Câncer”, “Foi assim” e “Pauapixuna”.
Ou seja, tivemos o que celebrar, nesses últimos 41 anos, nas letras papaxibés. E olhem que nem toquei nos nomes de Benedito Nunes, Vicente Salles…