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A estrela do Umarizal: “Quem São Eles”

Escola resgata samba histórico em 2024 e exalta memórias do carnaval paraense. Foto: Olga Leiria - Diário do Pará
Escola resgata samba histórico em 2024 e exalta memórias do carnaval paraense. Foto: Olga Leiria - Diário do Pará

CRÔNICA

João de Jesus Paes Loureiro*

ESPECIAL PARA O VOCÊ

Certa noite. Vaga noite tão noturna. Bairro do Umarizal. Noite cheia de noites no seu ventre. Noite a sonhar com tantas outras noites. O luar desvela o alvo peito da lua. Dessas noites que parecem entrelaçar real e imaginário deixando a imaginação vagar entre o poético e o concreto a tecer o tapete de estrelas para nossos caminhos. Eu me sentia pisando o chão das altas horas do passado no relógio do presente, distraído a seguir tropeçando em sombras pelo chão ainda não asfaltado da avenida Wandenkolk.

Foi quando senti o mistério de um outrora não vivido, presente no agora sendo vivido, desenhado na neblina da memória, como se o que outrora aconteceu agora estivesse acontecendo. De uma esquina surge Bruno de Menezes a declamar poemas para Eneida de Moraes; mais adiante, Tó Texeira dedilha ao violão nova toada para que De Campos Ribeiro talvez aplicasse uma letra, enquanto o violonista atual Salomão Habib anotava dados para seu livro sobre o Tó; embalando-se em cadeiras de vime, Adalcinda Camarão e Rodrigues Pinajé conversam abanados pelo “leque de estrelas” nessa noite morna de Belém.

Subitamente, sou sacudido pelo ritmo da orquestra de tambores, pandeiros, tamborins, reco-recos e cuícas, regida pelo maestro Pedro Paulo, soando da sede do Quem São Eles, minha Escola de Samba do coração, estrela do Umarizal. Fui até em frente ao terreiro da sede e, antes de entrar, sentei-me sob a mangueira em frente, contemplando o movimento, do outro lado da rua. E pensei como a história do Quem é, também, a história de uma época. E em sua contribuição à história atual do carnaval paraense.

O Império do Samba Quem São Eles levou pela avenida, para o delírio desmedido do Carnaval, um constante amor concreto pela cultura do Pará, por sua gente, por sua história. Atraiu artistas, intelectuais, professores, universitários, contingentes da classe média a se incorporarem no desfile de rua, ao lado da população de bairros. Definiu um estilo, criou uma ala de compositores fiéis, não se inibiu em admirar e reconhecer o valor das outras Escolas de Samba. Habitualmente, até então, admirar uma escola e frequentar sua sede, tudo bem, poderia acontecer.

Era exótico e interessante! Sobretudo aos políticos, no ano eleitoral. Eram casos contados nos dedos e de repercussão no eleitorado do bairro. Mas, sambar com o povo nas ruas e nos desfiles oficiais, não era um fato socialmente legitimado. O mérito de ter provocado essa virada é do Quem São Eles, a partir do desfile que celebrou Eneida de Moraes, cujo samba tema com os versos que escrevi cantava:

“Com dez metros de saudade/fiz a minha fantasia/vai um guiso de tristeza/na camisa da alegria/Quem São eles quem foi ela/que a voz do povo anuncia”. Celebrava uma notável mulher, que firmou destemidamente sua condição feminina, enfrentou a ditadura Vargas na militância sociocultural no Rio de Janeiro, ignorou o risco de ser comunista assumida quando foi presa acusada de subversiva. Impôs-se como uma das mais importantes cronistas brasileiras, tornou-se referência pela participação e exaltação do carnaval carioca, emoldurou Belém na vitrine de referências literárias do País.

Enfim, a história do Quem é sempre tecida por um tear de histórias desde Almerindo, passando pelo celebrado Luiz Guilherme, mais tarde Gáucio e tantos outros devotados presidentes, até chegar no atual, o jovem Geraldo Monteiro.

Não posso esquecer o fim de tarde, quando Luís Guilherme e Laury Garcia me visitaram no apartamento da rua João Balbi, desejando esclarecer uma dúvida quanto à minha votação no recente concurso do carnaval daquele ano. No item Harmonia, o meu voto tinha sido desfavorável ao Quem São Eles. Expliquei-lhes que, nesse item, o Império do Samba tinha uma falha: algumas alas, que eram organizadas e custeadas por seu líder, não se encaixavam no enredo e dependiam da criatividade autônoma de seus responsáveis.

Eram organizadas em sigilo para que pudessem causar surpresa ao público da própria Escola. Considero louvável tal dedicação, mas seria fundamental que seguissem harmonicamente o enredo cantado no samba tem. O que não acontecia. E faz parte da exigência do regulamento. Inclusive no desfile no qual participei do júri. Esclarecidas as dúvidas, tivemos cordial conversa brindada com cerveja e a coca-cola do abstêmio Luiz Guilherme.

Poucos dias após desse encontro proposto por eles, recebi-os novamente para conversar. Luiz Guilherme, a seu modo objetivo, foi iniciando a razão da visita: “Poeta. Para o carnaval do próximo ano, em nome da Escola, queremos convidá-lo para fazer o enredo do desfile do Quem. O tema será uma homenagem a Eneida de Moraes. Você aceita?” Respondi-lhe no mesmo tem: “Aceito! Mas temos que concordar no seguinte: Escrevo e enredo e faço a samba, pois são coisas que devem estar integradas. E as alas que têm autonomia precisam seguir a unidade do tema”. Concordaram.

Meu desejo foi o de ajudar na harmonia da Escola quanto a esse item, que é o grande momento visual da espetacularidade do desfile na avenida. Além disso, fortalecer o conceito de que, se a bandeira é o signo visual permanente de uma Escola de Samba, o samba tema é sua bandeira simbólica imaterial de cada ano. E deve estar revelando o que é desenvolvido cenicamente no desfile.

As Escolas de Samba têm uma raiz comum: nascem do povo e revelam sentimento coletivo. São criadoras de comunidades unidas pela felicidade de expandir sua alegria, do “viver junto”, tantas vezes reprimida nas condições de trabalho; festejar a realização de desejos, esquecer o cotidiano mutas vezes sofrido, para viver gloriosamente, uma realidade emocional e coletivamente construída por suas utopias de prazer. Todos sentindo-se cidadãs e cidadãos de uma cidade, sendo por todos admirados e admiradas, ainda que tudo deva acabar na quarta-feira.

Neste ano de 2024, o Quem São Ele sentiu na alma a necessidade de retomar o tema e o samba “Preamar da Cultura do Pará”, enredo e letra do samba de minha autoria. Porque, como a vida ainda acontece desigual para a sociedade humana, infelizmente a Amazônia e o Pará, especialmente, continuam apresentado as mesmas angústias resultantes da devastação da natureza, envenenamento dos rios pelo garimpo, desertificação da floresta, assassinatos de indígenas, lideranças no campo, trabalhadores e trabalhadoras da terra, como também de quilombolas.

Todavia, a cultura artística popular, cada vez mais fortalecida e recriada popularmente, mantém-se como a grande expressão coletiva de beleza, alegria e identidade. O Quem São Ele mostra o fortalecimento de sua história quando canta: “Quenzão, Quenzão, Quenzão / Oh! Meu coração a cantar / Quenzão, Quenzão, Quenzão / Preamar da cultura do Pará”. Ou seja, sabendo como é maravilhoso sempre revisitar o amor renovado e fecundado, também canta em coro: “ É lindo, reencontrar um grande amor/que o tempo não murchou, e nem a vida/e ver o teu sorriso como flor/de grená e branco na avenida.

*João de Jesus Paes Loureiro é escritor, poeta, professor universitário e pesquisador nos campos da Estética e Arte, com mais de 30 livros publicados, além de autor do samba que o Império de Samba Quem São Eles leva à avenida em 2024.