
Uma grande festa de aniversário foi armada em 2025 para os 60 anos de fundação de uma das grandes bandas de rock de todos os tempos: The Doors. Ela começou no fim do ano passado, com a reedição em vinil de seus seis álbuns de estúdio (reunidos em uma caixa) e, numa versão bombada, de quatro LPs, do disco ao vivo “The Doors – Live in Detroit”, registro de show na Cobo Arena, em 8 de maio de 1970.
Mas a cereja do bolo só chegou este ano, com o lançamento de “Night divides the day”, um luxuoso volume com fotografias raras e entrevistas íntimas com os membros sobreviventes Robby Krieger (guitarra) e John Densmore (bateria), além de textos do poeta-vocalista Jim Morrison e do tecladista Ray Manzarek.
Ao longo de sua trajetória (que seguiu, sem uma pequena fração sequer do brilho, após a morte de Morrison, em 1971), o Doors nunca se apresentou no Brasil. Mas o país é muito querido de Densmore, que mesmo nunca tendo andado por essas terras, é um grande apreciador de sua música e de sua cultura. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, por Zoom, de Los Angeles, ele viaja 60 anos no tempo.
– (Em 1965), quando os Doors estavam se formando, “Garota de Ipanema” estava tocando no rádio. E eu dizia ao Ray, nosso tecladista, o falecido e maravilhoso Ray: “Os brasileiros têm essa capacidade de suingar muito forte, de ter um ritmo profundo com um relaxamento total, sem forçar nada.” Isso é o que a bossa nova significa para mim. Ela é tão ritmicamente empolgante, mas é relaxada. Como se faz isso? – pergunta-se John Densmore, hoje um animado senhor de 80 anos.
A influência da bossa nova foi parar na bateria de “Break on through (to the other side)”, primeiro single do grupo e faixa que abre seu álbum de estreia, “The Doors” (1967).
– Como eu estava em uma banda de rock, pensei: “Tudo bem, vou deixar essa batida da bossa um pouco mais dura e mais rápida.” E ela combinou perfeitamente com os versos “day destroys the night/ night divides the day/ try to run, try to hide/ break on through to the other side”. Aquilo é justamente o “da da da da da-da da-da da-da” (cantarola a melodia de “Garota de Ipanema”), só que acelerado. Que posso dizer sobre isso? Você rouba dos melhores, certo?
Na língua portuguesa, o baterista diz só saber falar uma palavra: beijinho. Mas se mostra em dia com os acontecimentos políticos que “unem” Brasil e Estados Unidos.
– O (presidente americano Donald) Trump tem quase a mesma idade que eu, só um ano a menos. Ele deveria saber a importância que a bossa nova teve nos anos 1960 e ser mais brando com as tarifas (sobre produtos do Brasil). Qual é, cara? – indigna-se ele. – Sei que estamos num momento sombrio, mas as coisas vão mudar.
Em 1965, a Califórnia era “a terra prometida” para o jovem John Densmore, um músico cheio de sonhos – que se tornaram maiores do que ele imaginava.
– Eu esperava conseguir pagar o aluguel por uns dez anos ou um pouco mais de tempo… Nossa, já se passaram 60 anos e ainda estou indo muito bem! Então, obrigado, Jim, Ray e Robbie. Acho que éramos uma dessas boas combinações de diferenças, um exemplo de inclusão da qual o mundo tanto precisa hoje – acredita. – Porque eu tinha o jazz, Ray tinha blues de Chicago e um pouco de música clássica, como a introdução de “Light my fire”, que é meio Bach. Já Robbie tinha o violão flamenco, e Jim lia todos os livros do planeta. De alguma forma, esse quarteto se dava bem musicalmente, nós fazíamos uma espécie de sopa que em New Orleans eles chamariam de gumbo. Uma sopa que tem de tudo, saborosa.
John Densmore assume as muitas influências que os Doors sofreram.
– O baterista do (grupo do pianista de jazz) Oscar Peterson, Ed Thigpen, tinha rebites em seu prato de condução, ele fazia aquele chiado e eu pensei: “Meu Deus, isso é tão perfeito para ‘Riders on the storm’, chiando como gotas de chuva no prato!” – conta ele, entregando que, nos primeiros dias do Doors, Robbie Krieger tocou para ele discos do porto-riquenho José Feliciano (o mesmo que, anos depois, gravaria uma versão com toques latinos de “Light my fire”). – Quando ele gravou nossa música, ficamos impressionados. “Light my fire” também foi influenciada pela bossa nova, na parte dos versos, mas quando chega o refrão, ela vira um rock. Pois o José desacelerou tudo, fez de “Light my fire” uma balada lenta e sensual. Nós amamos a versão porque era tão diferente, e ele não nos copiou.
Pensando na morte recente de Brian Wilson, o gênio musical dos Beach Boys, Densmore reflete sobre as duas Califórnias opostas: a dos BB e a dos Doors.
– O Brian tinha um talento maravilhoso e incrível, mas os Beach Boys eram meio que aquele lado surfista mais leve, do sol, da paz e do amor (da Califórnia). Talvez nós fôssemos o lado mau, da guerra não declarada do Vietnã, que chamavam de “conflito”. Então, enquanto nós estávamos cantando “The end”, eles estavam com coisas mais ensolaradas, embora tenham acabado evoluindo para algo realmente maravilhoso.
Para John Densmore, as recentes intervenções da Guarda Nacional ordenadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para conter os protestos contra a política de deportações de imigrantes (“esse negócio que parece um comício nazista ou algo assim”) aconteceu em uma área muito pequena, “embora esteja criando medo em todos os lugares”.
– O abismo entre ricos e pobres é o maior da história do nosso país. A classe média é a cola entre a alta e a baixa. Se você eliminá-la, vai ter atrito – alerta ele, chamando a atenção para uma tatuagem do yin e yang que tem no braço. – Precisamos lembrar que aqui, na parte escura, há um pequeno ponto de luz. Sim, nós vamos sair da escuridão, a mudança virá. E, da mesma forma, quando você está na luz, sabe que isso também não dura para sempre. É da natureza humana ir e voltar. Quando fiz essa tatuagem, eu não sabia, mas agora eu sei. Neste momento, a tapeçaria do mundo está desgastada, mas há fios nas bordas que serão refeitos como algo ainda melhor.
O baterista diz se recordar de que, quando era criança, se ouvisse que alguém tinha 60 anos, costumava pensar: “Bem, esse vai morrer em breve…”
– Agora eu tenho 80 e, bom, não sei… a morte é o novo 80! Acho que tenho mais 20 anos pela frente (risos). Digo que talvez eu fosse muito mais velho antes do que sou mais agora, citando aquela frase maravilhosa do Bob Dylan (“I was so much older then/ I’m younger than that now”, da canção “My back pages”). Em espírito, estou indo na direção oposta do tempo – diz Densmore, envolvido no momento com Chuck D, rapper e líder do grupo Public Enemy, em um projeto de hip-hop alternativo, que sairá em vinil no ano que vem. – Nos conhecemos há alguns anos, e recentemente Chuck me mandou um e-mail dizendo: “Você tem as batidas, eu tenho as rimas, vamos fazer algo!” Quando ele me mandou a palavra “Dope” (“Maneiro”, em tradução livre) com o “do” do logotipo dos Doors e o “pe” do logotipo do Public Enemy, pensei: “Meu Deus, era isso que deveria ser! Está tudo pronto, estamos masterizando o disco e botando os créditos.”
O outro projeto é com o tecladista Adam Holzman, filho de Jac Holzman, executivo da gravadora Elektra, que contratou os Doors e pela qual fizeram seus LPs.
– Adam idolatrava Ray Manzarek, e chegou a ir ao estúdio nos ver gravar, quando tinha uns 8 ou 10 anos. Ele se tornou um tecladista tão eficiente que Miles Davis o contratou para tocar sintetizadores na sua fase fusion (em especial no álbum “Tutu”, de 1986) – conta. – Eu o chamei para vir aqui em casa, tocamos só nós dois e ficamos loucos com o resultado, achamos que tínhamos que fazer um disco. É um álbum de jazz todo instrumental, com versões de algumas músicas do Doors e algumas do Miles. Acho que vai se chamar “Door jams and Miles to go”.
O disco tem uma história que remete a Jim Morrison e ao ano de 1965:
– Conheci Jim Morrison na garagem dos pais de Ray Manzarek, em Manhattan Beach. Ele nunca tinha cantado antes e era ridiculamente tímido. Cheguei a pensar: “Bem, este não é o próximo Mick Jagger!” (risos). Ele não queria cantar, então eu disse ao Ray, porque estávamos falando de jazz: “Você conhece o ‘All blues,’ do Miles?” Ele disse que sim, e então tocamos essa música. Pois gravei “All blues” com Adam Holzman. A primeira música que toquei com o Ray, gravada com o filho do homem que nos contratou e que tocou com o Miles. Fechei um círculo lindo!
Recentemente, Desnmore tocou com Robbie Krieger no Whiskey a Go Go (“a boate onde começamos!”) num projeto do guitarrista de recriar ao vivo os álbuns do Doors – na íntegra e com as canções na mesma sequência do disco.
– Toquei “Riders on the storm”, e também a música que vem logo antes no disco (“L.A. Woman”, de 1971), “The WASP (Texas Radio and the Big Beat)”. Disse à plateia: “Nunca toquei isso ao vivo, desejem-me sorte!” Passamos raspando, mas foi divertido – conta ele.
No passado, Densmore chegou a ter algumas questões legais com Krieger sobre os possíveis usos comerciais das músicas dos Doors. Ele mantém seus princípios.
– Ainda não permito que nenhuma música seja usada para vender desodorante (risos) – garante ele, que diz fazer tudo isso por causa de Jim Morrison. – Uma vez, quando o Jim estava fora da cidade, nós chegamos a considerar transformar “Light my fire” em “vamos lá, Buick, acenda meu fogo!” Era muito dinheiro naquela época, e nós estávamos meio que babando com a possibilidade. Quando Jim voltou, ele disse: “Sim, nós deveríamos fazer esse comercial, e eu gostaria de ir na televisão e destruir o carro com uma marreta!” Tomamos isso como um “não” (risos). E olha que Jim nem participou da composição de “Light my fire”. Ele escreveu um verso, o “nosso amor virou uma pira funerária”. Mas essa música é a basicamente do Robbie. E o Jim ter ficado tão chateado significa para mim que ele se importava com nosso catálogo.
Texto de: Silvio Essinger