Fã de Rita Lee, eu pego carona nas páginas amarelas da Veja, deste fim de semana, e reproduzo aqui na minha coluna, entre lágrimas e saudade, a entrevista de Roberto de Carvalho, marido da musa da MPB, do POP mundial e de todos nós. Espero que curtam tanto quanto eu curti.
Roberto de Carvalho, sobre perda de Rita Lee: ‘Morreu um pedaço de mim’
O marido e parceiro musical abre seu coração sobre detalhes dolorosos da morte da cantora e revela planos para o legado dela
Companheiro de vida e carreira de Rita Lee por quase cinquenta anos, o talentoso compositor e multi-instrumentista Roberto de Carvalho, 70, vem enfrentando com intensidade o luto pela perda da artista — morta no início de maio em razão de um câncer. Pai de três filhos (Beto, João e Antonio) e avô de dois netos (Izabella e Arthur), Roberto formou com Rita uma das parcerias mais bem-sucedidas da música nacional, com 55 milhões de discos vendidos e hits como Lança Perfume e Mania de Você. Mais que isso, a dupla definiu o que se entende hoje por pop rock no Brasil. Ao receber VEJA em seu apartamento, em São Paulo, Roberto abriu o coração pela primeira vez sobre detalhes dolorosos do drama vivido por Rita e a família, além de revelar os planos para lidar com o imenso legado da artista. Emocionado, interrompeu várias vezes a conversa de duas horas. “Nunca fui de chorar. Mas uma vez me disseram que, quando eu chorasse a primeira vez, nunca mais pararia”, desabafou. Confira a entrevista.
Um mês e meio após a morte de Rita Lee, como o senhor está?
É a sequência de um longo processo de uma vida toda (interrompe a resposta com voz embargada). Tenho altos e baixos. Tem horas em que estou em paz com o que aconteceu. Tem horas em que desabo. Particularmente, não creio que eu possa algum dia ter a coragem que ela teve de passar por tudo que passou. Depois que ela subiu, tive até certo alívio com o fim do flagelo. Por outro lado, morreu um pedaço de mim também. Estou no processo de entender quem sou e o que sobrou de mim após toda essa situação.
Como reagiu após ler o livro Outra Autobiografia, no qual ela descreve o período em que enfrentou a doença?
Foi um bálsamo. Li apenas depois de pronto, quando Rita já estava no fim. É uma narrativa extremamente positiva em relação a tudo que passamos. Do meu ponto de vista, foi tudo bem mais dramático. Eu e o João (o segundo filho do casal, de 44 anos) acompanhamos de perto as decisões médicas. Rezamos para fazer as escolhas certas, mas é uma encruzilhada em que você não sabe o que fazer, e havia grandes chances de fazermos escolhas erradas. O período pós-livro foi muito difícil, pois Rita estava num processo de declínio, de não conseguir andar, de sentir muitas dores. Foi muito duro mesmo.
Rita sempre falou sobre a morte em suas músicas e nos livros. Vocês conversavam sobre o tema?
A morte nunca foi um tabu para nós. Sempre falamos sobre isso com naturalidade, especialmente durante a pandemia. No primeiro ano da pandemia, fomos morar na Granja (sítio em Cotia, na Grande São Paulo) e tivemos um convívio bastante intenso. Nossa rotina era gostosa, de tomar sol, de fazer nossa comidinha, de ver televisão. Era uma utopia dentro da distopia. Olhando para trás, parece que foi um ano de despedida da nossa vida.
Quando isso mudou? Tudo desandou após Rita parecer sentir os efeitos da segunda dose da vacina da Covid e, no hospital, descobrirmos que na realidade ela estava com câncer. Foi o começo do fim. Com o tratamento, deletamos o tumor do pulmão, mas surgiram metástases nos brônquios e em outros lugares do corpo, como o famoso “Jair”, um tumor na lateral da barriga. Quando achamos que haveria uma haveria uma vitória o médico me chamou num canto, longe da Rita, e disse: “Não tenho boas notícias. Metástase no cérebro”. Eu desmaiei. Apaguei.
O senhor estava ao lado dela quando ela morreu?
Sim. Estávamos eu e meus filhos, além das enfermeiras. Não foi uma coisa pesada. Ela foi apagando pouco a pouco. A respiração foi… (interrompe a resposta emocionado). Não teve drama, foi como uma chama se extinguindo. Foi como um passarinho machucado. Eu queria ter ido junto. A gente planejava ir junto, sabe? Foi o que a gente sempre quis. No fim, ela já não estava falando mais nada. Ela abria os olhos e dormia.
Como recebeu as manifestações de carinho dos fãs?
Leio tudo o que eles escrevem no Instagram. São coisas muito legais e que me consolam muito. O velório no Planetário do Ibirapuera foi uma das coisas muito legais e que me consolam muito. O velório no Planetário do Ibirapuera foi uma das coisas mais emocionantes que já presenciei. Em determinado momento, os fãs foram embora e ficamos só a família e amigos próximos. Sentamos naquelas cadeiras reclináveis e começou a tocar um canto gregoriano. Projetou-se na cúpula o céu da hora e do dia em que ela nasceu. Rita tinha me dito que queria o caixão o caixão fechado. Eu também não queria que ficasse aberto durante o velório, mas naquele momento senti que deveria abrir. Quando fiz isso, ela estava linda, tranquila. Deixei aberto para ela fazer essa viagem junto com a gente. A sensação que tive foi que ela realmente estava ali. Foi uma despedida magnífica. Eu olhava para o céu e olhava para ela. Me deu muita paz.
Rita disse que gostaria de ser cremada e que suas cinzas fossem jogadas no jardim de casa. Planeja fazer isso?
As cinzas da Rita estão aqui em casa, num altar. Vamos jogá-las no jardim, mas só quando u subir e encontrar com ela. Quero ser cremado e que as minhas cinzas sejam misturadas com as dela. Aí nossos filhos decidem o que fazer. Nesse meio tempo, ela fica aqui pertinho de mim.
O senhor estudou astrologia e já disse acreditar muito nas “forças do universo”. Como imagina o lugar onde ela estaria hoje?
Sou aberto a qualquer possibilidade em relação ao que vem do desencarne. Admito a possibilidade de que o fim da vida seja realmente o fim de tudo, até a hipótese da cabala, de que ascendemos à cabeça de Deus. Imagino que ela esteja sem as dores e as vicissitudes do corpo físico, como se ela se integrasse num grande oceano em que tudo é uma coisa só. Como se ela fosse uma gota desse oceano. Deus é tudo. Rita sempre me disse que queria ir primeiro do que eu porque seria muito complicado ela viver aqui sozinha.
Como seus dois netos, Izabella (17 anos) e Arthur (5 anos), filhos do Beto e do Antonio, reagiram ao saber da morte?
Eu não achava adequado que o Arthur visse a Rita da maneira como ela estava. Pensava que seria muito difícil para ele. Mas ele foi vê-la e o último autógrafo que Rita deu na vida foi para ele. Foi bonito. A gente se fechou e a nossa casa virou uma filial do hospital. Do ponto e vista da infraestrutura, Rita teve o melhor — tanto que ela teve uma sobrevida de dois anos, quando as previsões apontavam para poucos meses. Ela passou por essa via-crúcis com um estoicismo e um senso de realidade surpreendentes.
Quando houve o anúncio da aposentadoria em um show no Rio, em 2012, o senhor também concordava com aquela decisão?
Sim. Era um acordo sobre o qual já conversávamos havia um bom tempo. Sempre trabalhamos muito e havíamos chegado a um estágio da vida em que tínhamos de lidar com problemas físicos, dores na coluna… Rita desenvolveu também pavor de avião. Pouco antes de anunciar a aposentadoria, o avião em que estávamos enfrentou uma turbulência e teve dificuldades para pousar no Rio. Ela ficou apavorada. Fizemos o restinho da turnê de ônibus.
Rita disse que tinha material inédito guardado. Como será feita a gestão desse legado?
Nossos filhos é que estão envolvidos nessa parte. João fez recentemente uma bela releitura de nossos hits e lançou álbuns com remixes. Beto está fazendo shows em homenagem a ela com uma banda formada por músicos que já tocaram conosco. E Antonio, que é das artes plásticas, está desenvolvendo coisas nessa área. Vou supervisionar tudo.
Pode adiantar o que virá por aí?
Existe o projeto de uma cinebiografia, tem ainda documentários e filmes. Tenho interesse em fazer um filme sobre nossa história de amor, uma love story musical. Temos, ainda, muitos shows ao vivo gravados e algumas músicas inéditas (mas não muitas). Lançaremos em disco a apresentação que fizemos em 2002 no Luna Park, em Buenos Aires, por exemplo. Li que Paul vai usar inteligência artificial para restaurar a voz de John Lennon em uma fita demo. Também temos coisas gravadas em fitinhas cassetes dos anos 1970 e 80. Quem sabe o que pode acontecer? É necessário tempo e tecnologia para que essas coisas sejam feitas.
Rita guardou muita memorabilia. Pensa em algo como um museu Rita e Roberto?
Temos tanto material que daria para fazer dois museus. Eu adoraria fazer isso. Mas a primazia do nome é de Rita. Museu Rita Lee. Seria incrível. Durante a pandemia, fizemos uma exposição que foi um sucesso.
Ela foi presa na época da ditadura militar, em 1976, grávida de seu filho Beto, sob acusação de porte de drogas. Como o senhor enfrentou aquele período duro?
Nunca passou pela minha cabeça fazer outra coisa que não fosse ficar com ela. Quando Rita saiu da cadeia, teve músico que não quis continuar na banda porque ela era sujeira total. Todo mundo desapareceu.
O senhor falou da primazia do nome de Rita, mas ela sempre fez questão de incluir o nome do senhor nos álbuns. Naquela época, muita gente estranhou isso. Como encarou as críticas?
Foi um processo. Diziam que eu havia colocado música latina no rock de Rita. Não é verdade. Talvez eu tenha aditivado a coisa latina, mas, antes, ela já havia feito Bandido Corazón, com Ney Matogrosso. Ela já tinha essa coisa. Eu só anabolizei seu lado latino.
O senhor diria que Rita e Roberto criaram o que se entende hoje em dia por pop rock no Brasil?
Dizem as boas línguas que sim. Para desgosto dos roqueiros, incorporamos o que vinha da era disco. Rolling Stones estavam fazendo Miss You. David Bowie, fazendo Let’s Dance. Fizemos Chega Mais e Corre-Corre, músicas com uma atmosfera Studio 54 (lendária discoteca nova-iorquina). Estávamos abertos a tudo o que estava acontecendo. Sectarismo musical é a coisa mais esdrúxula que pode existir. Música é música, desde Mozart até Anitta. Música é vida.
Esse pop também tinha muito da intimidade do casal, em hits como Lança Perfume e Mania de Você. Como essas músicas surgiam? Mania de Você surgiu após um momento de amor e sexo. Estávamos deitados naquela estado pós-orgásmico e eu peguei o violão, que ficava ao lado da cama. Comecei a balbuciar uma melodia e Rita, que sempre tinha um caderninho ao lado, escreveu a letra. Em vinte minutos, a gente já tinha letra e música.
(Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847)
Foto: (Guilherme Samora/Divulgação)