Durante três dias vivi na companhia de Ney de Souza Pereira e batizado pela arte e pelo cosmos de Ney Matogrosso. Conheci o cidadão que sempre se escondeu atrás da fantasia e da personagem do artista. Avesso aos holofotes, fora os do campo profissional, Ney parece sempre ter sido um sujeito estranho dentro e fora de cena, até por ser excessivamente fiel a si mesmo na vida e na música.
Quem apresenta um pouco mais desse artista genial é o jornalista paulistano Julio Maria, do time de grandes biógrafos brasileiros, pela habilidade já mostrada no livro anterior “Elis Regina – Nada será como antes”. Em “Ney Matogrosso – A Biografia”, editada pela Companhia das Letras, o autor faz um relato consistente da trajetória da vida e obra do cantor revelado como vocalista andrógino do grupo Secos & Molhados. Os acontecimentos mais relevantes dos 50 primeiros anos de vida de Ney estão impressos nas 488 páginas do livro com texto apurado, extremamente bem escrito é editado.
Um livro gostoso de ler. Viciante. É que Julio conta muito bem a história deste cara impetuoso que enfrentou o machismo do pai e, para não baixar a cabeça ao autoritarismo paterno, saiu de casa após briga violenta e caiu no mundo com 17 anos. Na obra fica claro que a liberdade sempre foi o bem mais precioso na visão de Ney, cidadão desapegado de dinheiro, devoto dos bichos, amante da natureza e praticante voraz de sexo feito com homens, mulheres e plateias embevecidas com o magnetismo desse cantor que sempre cantou (também) com o corpo, usado como forma de expressão contra a tirania.
Além de recontar a saga meteórica e fugaz do grupo Secos & Molhados, a biografia detalha a gênese de álbuns e shows feitos por Ney na carreira solo iniciada em 1975, além dos amores que passaram pela vida do artista, entre eles Cazuza, por exemplo. Contudo, o mote do livro é a resistência de Ney Matogrosso na luta contra toda forma de opressão. A voz andrógina do cantor foi veículo para expressar sentimentos e emoções que provocaram a ira dos conservadores.
Ler biografias nos aproxima do biografado, nos torna íntimos, gera conexões e, no meu caso, me deixa mais fã. Ney, sujeito estranho que resistiu aos ataques e venceu todas as resistências, chegando aos 82 anos como símbolo da liberdade de ser fiel somente a si mesmo. Um cidadão instigado.
Vale muito a pena se debruçar nessa obra, que traça um perfil minucioso da vida de uma das maiores vozes da música brasileira.
Por Ana Paula Sampaio
Foto: Bob Wolfenson/Divulgação