É dia de feijoada. Buscapé, Cinthia e Berenice, protagonistas da série “Cidade de Deus: A Luta não Para”, almoçam em mesinhas de plástico forradas com toalhas floridas em uma quadra na Chácara Bela Vista, comunidade na zona norte de São Paulo que encarna a Cidade de Deus carioca em parte dos novos episódios da série, previstos para chegarem na HBO Max ainda este ano.
Apesar da cena descontraída, a nova temporada deve dar continuidade ao clima de tensão instaurado pela antecessora, que terminou com a morte de Curió, chefe do tráfico vivido por Marcos Palmeira. A rixa entre ele e Bradock, interpretado por Thiago Martins, causou um confronto entre gangues na comunidade.
Ainda que tenha momentos de perseguição e tiro, a série evita retratar a favela como um campo de guerra -principal crítica ao longa de 2002 que, por outro lado, projetou o cinema brasileiro para o mundo e lançou as bases do bangue-bangue contemporâneo no país.
Na próxima temporada, a Cidade de Deus será tomada pelo embate entre o filho de Curió, Geninho, e Matarrindo, seu braço-direito, que brigam pelo controle do tráfico na favela. Revoltado com a tragédia que tomou conta da comunidade, Buscapé, vivido por Alexandre Rodrigues, se une a Berenice, interpretada por Roberta Rodrigues, para tentar desmantelar a rede de crimes instaurada nos episódios anteriores.
“A violência é muito constante e presente nos universos periféricos, mas não queríamos falar só de violência. Para falar de resistência, de outras formas de existência na favela, buscamos histórias cotidianas e criamos uma crônica de vida dos moradores”, diz Aly Muritiba, diretor da série, em meio a um galpão lotado de figurinos.
Na Chácara Bela Vista, entre os predinhos azuis e amarelos desbotados, as filmagens pareciam se adequar a vida cotidiana da comunidade, que continuava sem alvoroço. Crianças voltavam da escola de uniforme, outras jogavam bola, um grupo de jovens com óculos espelhados fumava e conversava, enquanto uma ou outra galinha circulava pelos arredores da quadra.
Muritiba também dirigiu “Cangaço Novo”, série do Prime Video que atualizou os conflitos do sertão nordestino para os dias de hoje. A produção foi elogiada pela crítica, que viu em sua violência coreografada e protagonistas humanizados uma nova versão do “nordestern”, subgênero que utiliza elementos do faroeste americano em histórias ambientadas no nordeste brasileiro.
Além da Violência na Cidade de Deus
Mas repaginar “Cidade de Deus” implicava um desafio maior, porque significava dar uma nova roupagem a uma obra consagrada. Ao mesmo tempo, a produção precisava romper com a narrativa predominantemente voltada à violência.
Deu certo. A série reserva bastante tempo de tela, por exemplo, à articulação política de Berenice, que tenta unir forças com outros moradores para combater a presença do tráfico e a milícia na Cidade de Deus. É impossível não notar as semelhanças entre a personagem e Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em 2018.
A comparação causava receio em Rodrigues, que interpreta Berenice. A atriz não achava certo que uma figura com tanto peso para a sociedade, tanto no cenário político quanto nas periferias brasileiras, fosse incorporada a uma personagem fictícia. O sossego só veio, conta ela, quando recebeu uma ligação da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, irmã de Marielle.
“Ela falou, ‘assisti [a série] com os meus pais, eles lembraram da Mari. Você honrou a memória dela'”, lembra a atriz, com lágrimas nos olhos. Nos novos episódios, além de Berenice, eleita vereadora, aparece uma nova figura que mobiliza jovens para resistirem à violência na comunidade por meio do funk.
“Os novos tempos mudam algumas coisas. A gente está botando em xeque os arquétipos e para ver o quanto eles ainda nos ensinam. É por isso que o Brasil está voltando a histórias importantes, para entender o que elas tinham de importante e o que deveria ter mudado”, diz Matheus Nachtergaele, que retorna como Sandro Cenoura, o traficante gente fina e adversário de Zé Pequeno no longa de 2002. Além de Cenoura, Nachtergaele reviveu recentemente João Grilo no cinema, em “Auto da Compadecida 2”, e está no remake de “Vale Tudo”.
Cenoura retorna para a Cidade de Deus depois de cumprir sua pena na prisão, mas decide não voltar para o crime. “Com o aumento da tensão na comunidade, ele se envolve no conflito para tentar persuadir os mais jovens, por quem é respeitado”, conta Nachtergaele.
O Legado de Fernando Meirelles e o Instituto Arteiros
Um dos aspectos que foi resgatado do longa de Fernando Meirelles é a contratação de moradores das comunidades para atuarem na série. O Instituto Arteiros, que forma artistas na Cidade de Deus, levou 20 jovens para integrarem o elenco, afirma Muritiba, o diretor. “Sabíamos que era muito importante ser abraçado pelas comunidades para fazer essa história e que, por consequência, precisávamos abraçá-los de volta.” (Alessandra Monterastelli)