Por Vitor Moreno
Maria Zilda Bethlem, 73, esteve presente em alguns dos maiores sucessos da teledramaturgia brasileira. Teve personagens de destaque em “Guerra dos Sexos” (1983), “Vereda Tropical” (1984), “Selva de Pedra” (1986), “Bebê a Bordo” (1988), “Top Model” (1989), “Vamp” (1991) e “Por Amor” (1997), para ficar em alguns títulos de sua vasta carreira.
Fora da Globo desde 2016, quando fez sua última novela (“Êta Mundo Bom”), a atriz agora trava uma batalha judicial contra a emissora. Como antecipou a coluna Outro Canal em outubro de 2024, ela entrou com uma ação pedindo que fossem revistos os valores que ela recebe pelas reprises e vendas das novelas em que atuou (a emissora venceu na primeira instância, mas cabe recurso).
Após a Globo acusá-la no processo de querer “enriquecer ilicitamente”, Maria Zilda falou à reportagem para dar sua versão dos fatos e explicar o que a motivou a tomar a iniciativa de processar a empresa em que trabalhou por mais de 40 anos e que considerava ser a sua casa.
“O que a Globo faz é se apoiar na força dos contratos para perpetuar uma lógica de apropriação indevida: ela se apossou dos meus sucessos antigos e segue lucrando com eles”, afirma ela, que aponta que na época em que gravou seus maiores sucessos não havia ainda streaming ou TV paga nos moldes que conhecemos hoje.
Em sua defesa, a Globo argumentou que as vendas e reexibições estavam previstas em todos os contratos de trabalho assinados pela atriz. A empresa também afirmou que sempre apresentou os recibos de pagamentos que fez a ela, inclusive o que está anexado ao processo, que mostra a soma de R$ 218 mil por reprises que foram ao ar entre 2018 e 2024.
Maria Zilda, no entanto, quer uma explicação sobre os valores. Segundo a atriz, uma de suas principais motivações é que a Justiça estabeleça parâmetros para que os artistas estejam protegidos nesse novo cenário. “Não estou lutando só pelo que me é devido, mas para que as próximas gerações de artistas não sejam tratadas como meros fornecedores de material bruto para exploração ilimitada”, avalia.
Na entrevista, ela diz ainda que não teme retaliação por parte da Globo ou do mercado, por considerar que seu capítulo na emissora está encerrado. No entanto, ela diz que muitos colegas não se posicionaram sobre o assunto justamente por medo. Confira abaixo a entrevista.
Entrevista com Maria Zilda Bethlem
PERGUNTA – Por que decidiu entrar com o processo contra a Globo? Quando começou a pensar sobre o assunto e quanto tempo maturou a ideia até entrar com a ação?
MARIA ZILDA BETHLEM – Decidi entrar com o processo quando percebi que, ao longo dos anos, as obras que ajudei a construir —com minha interpretação, meu corpo, minha voz— estavam sendo reexibidas, comercializadas e exploradas sem que eu sequer soubesse como, onde e quanto. A ideia não surgiu de um dia para o outro; foi o resultado de um longo incômodo, de conversas com colegas, de reflexões sobre o respeito à nossa profissão. Maturou, sobretudo, quando compreendi que esse não é só um direito meu.
P – A Globo diz que os contratos já previam reprises e vendas. Por que, na sua visão, eles precisam ser revistos?
MZB – Não existia streaming nem TV paga nos moldes atuais. Não havia cláusulas prevendo que uma novela estaria disponível para consumo ilimitado, on demand, por milhões de pessoas, a qualquer hora, para sempre. Além disso, a ação trata sobretudo das novelas gravadas e transmitidas durante a vigência da lei nº 6.533/78, que proibia a cessão perpétua de direitos conexos e determinava remuneração adicional ao intérprete a cada nova exibição ou exploração de uma obra. O que a Globo faz é se apoiar na força dos contratos para perpetuar uma lógica de apropriação indevida: ela se apossou dos meus sucessos antigos e segue lucrando com eles.
P – questão dos direitos conexos sempre foi complexa. A Globo explicava algo sobre o assunto aos atores de seu elenco antes do momento da assinatura?
MZB – Não. Só muito mais tarde, com estudo, orientação jurídica e diálogo com colegas, é que percebi que existiam direitos sendo sistematicamente desrespeitados.
P – Com o surgimento da TV paga e do streaming, os contratos mudaram de alguma forma? Percebeu algum tipo de atualização nos últimos trabalhos que fez na emissora (quando esses players já existiam)?
MZB – Meus trabalhos foram realizados antes do surgimento do streaming. Quando eu soube que novelas em que atuei estavam disponíveis no Globoplay, para exibição ilimitada, fiquei surpresa: não fui comunicada, tampouco convidada a discutir a remuneração.
P – Em outras empresas com as quais já assinou contratos, os modelos eram parecidos ou havia muitas diferenças com relação ao que a Globo praticava?
MGZ – Eu nunca trabalhei para outra emissora, por fidelidade à Globo, que considerava ser a minha casa. Mas é importante dizer: a força econômica da Globo moldou o padrão de toda a indústria.
P – A própria Justiça ainda não tem jurisprudência clara para a questão que você está levantando, os resultados vêm variando muito em ações isoladas. Acredita que, com essa ação, pode ser que passemos a ter algo mais consolidado nesse sentido?
MZB – Espero que sim. Esse é um dos maiores motores da minha ação: contribuir para consolidar um entendimento jurídico que proteja os artistas diante desse novo cenário tecnológico e comercial. E fico muito feliz em ver que esse debate não está só no meu processo. Acabo de saber que o Supremo Tribunal Federal vai julgar questão similar —sobre o direito de fiscalização da exploração econômica das obras nas plataformas de streaming— num caso movido pelo Roberto Carlos e pelo espólio do Erasmo Carlos. Ou seja: é um tema que não atinge só a mim, mas todos os artistas brasileiros. O que o Supremo decidir valerá para todos os processos do país. Isso mostra como a nossa luta é justa, necessária e, acima de tudo, urgente. Não estou lutando só pelo que me é devido, mas para que as próximas gerações de artistas não sejam tratadas como meros fornecedores de material bruto para exploração ilimitada.
P – O processo teve apoio dos seus colegas? Que tipo de reação tem ouvido de atores que também passaram pela Globo? Acredita que a empresa poderá ser processada por mais pessoas pelo mesmo motivo?
MZB – Sim, tenho recebido manifestações de apoio públicas e privadas. Muitos colegas ainda têm medo de se posicionar, compreensivelmente, pela força que a Globo exerce no mercado. Só não estou sozinha porque tenho meus advogados.
P – Teme algum tipo de retaliação por parte da Globo, como não ser mais chamada para trabalhos na emissora? E do mercado como um todo?
MZB – Sinceramente? Não. Acredito que o meu tempo de Globo foi suficiente, tempo no qual fiz inúmeros trabalhos de sucesso. Hoje, não temo mais nada. Temo, sim, que artistas continuem sendo calados pelo medo e pela dependência. Tenho certeza de que estou certa: lutar pela minha dignidade, pelos meus direitos, por respeito e pela história de 40 anos de trabalho árduo, legado que deixarei para meus filhos.
P – Quer acrescentar algo?
MZB – Agradeço pela oportunidade de responder e pergunto: afinal, quem está enriquecendo ilicitamente?