Conhecido como Rato Borrachudo, o youtuber Douglas Mesquita Silva derrubou no chão um PlayStation 5 e registrou o momento em vídeo: “Criança mimada”, “kkkkkkk”, “patético”, “quebrou o apoiador de porta” foram algumas das reações, que por sua vez despertaram outras réplicas e tréplicas.
O episódio é uma pequena amostra do debate perpétuo entre “caixistas” e “sonystas”, como são chamados os fãs de Xbox e PlayStation. São ecos da disputa bilionária travada por Microsoft e Sony, que recentemente trocaram farpas jurídicas no Brasil, o que alimentou ainda mais as brigas.
Depois de política, religião e futebol, é hora de acrescentar videogame entre os tópicos capazes de amargar um jantar entre amigos. É a “guerra de consoles”, ou “flame war”, uma batalha simbólica e retórica, catalisadora de tensões morais e ideológicas parecida com a rivalidade entre torcidas de futebol. A disputa quer determinar qual é a melhor plataforma de games. Vale venda, resenha, preço, catálogo, audiência, qualquer coisa.
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Paguei incríveis R$17,73 ?#Xbox pic.twitter.com/u5csyPinpi
— Kaio Rodrigues (@k_rodrigues11) June 29, 2022
A tônica dos argumentos, em geral, é de humor e memes. Não é incomum, no entanto, ataques pessoais entre os participantes. Um dos principais combustíveis são os rumores, que recebem espaço generoso na mídia profissional especializada.
Esse processo é conhecido na psicologia como dissonância cognitiva. É como se o fato de um dado ser verídico ou não fosse secundário, já que a prioridade é reforçar uma tese ou crença a qualquer custo. Não é muito diferente do mecanismo das fake news, na avaliação da psicóloga Livia Scienza, que pesquisa jogos digitais na Universidade de São Carlos, no interior paulista.
Facebook, Telegram e WhatsApp são os quartéis, com grupos de aliados trocando conteúdo. O campo de batalha é o Twitter, rede social em que o Brasil ocupa a quinta posição entre os países que mais discutem videogames.
Há algumas semanas, o perfil oficial do Guaraná Antarctica, cheio de graça, experimentou tomar um lado. “ACEITA XBOX é mlhr que PlayStation”, os publicitários por trás da marca publicaram, assim mesmo, com erros de ortografia.
Como esperado, as reações foram ardentes. “Enquanto essa postagem estiver online eu não compro mais Guaraná Antarctica”, prometeu um usuário identificado como Baraka The Rapper. Em menos de 24 horas, a postagem do refrigerante foi apagada, e a Ambev, dona do Guaraná Antarctica, voltou a contar com o consumo de Baraka em seu faturamento.
De férias, o “sonysta” Matheus Struminski, de 32 anos, à frente do canal “sonysta” Gamer sem Regras, não acompanhou o auê ao redor da publicação. Ele exalta o PlayStation desde 2017. Antes, fazia parte do grupo oposto.
Struminski já perdeu a conta das tatuagens que tem no corpo, mas a primeira foi uma caveira de “Gears of War”, série do Xbox. Até que, há cinco anos, quando a marca da Microsoft passava por uma má fase, ele, “cansado de apanhar”, virou a casaca.
Foi mais difícil obter o ponto de vista “caixista”. A reportagem entrou em contato com cinco criadores de conteúdo, mas nenhum quis dar entrevista. Um deles chegou até alertar que este jornal sofreria a fúria dos fãs. Outro não respondeu ao email, mas escreveu no Twitter que tinha recusado a entrevista, afirmando ter “mais o que jogar”.
O único que quis falar, sob a condição de anonimato e por texto, foi o dono do perfil Pastor Xbox, para quem o console da Microsoft sempre foi execrado pela imprensa. “Isso criou um clima de tensão”, afirma ele, um analista de sistemas que assumiu o apelido após uma brincadeira de colegas de trabalho.
Ativo nas redes sociais desde 2020 e usuário de Xbox desde o primeiro aparelho, lançado em 2001, Pastor relata que participava mais da guerra de consoles, mas nos últimos tempos tomou distância. “O ‘flame’ às vezes foge do controle e nessas postagens as pessoas vêm com ofensas e xingamentos. Elas são muito passionais com seu pedaço de plástico predileto.”
Segundo Scienza, a psicóloga, são muitos os fatores que explicam o envolvimento dos gamers na guerra de consoles, sobretudo o sentimento de pertencimento a uma coletividade, nostalgia e design das redes sociais.Um ponto importante, segundo ela, é o interesse financeiro das empresas, que se beneficiam da divulgação feita pelos entusiastas, em geral homens. “Há um histórico da indústria de videogame em priorizar os meninos, o que agregou a masculinidade tóxica a uma parcela da cultura gamer”, diz.
Consoles de games são consumidos principalmente por jovens do sexo masculino. Eles são 63,9% do público, segundo a edição da Pesquisa Game Brasil 2022. Destes, pouco mais da metade tem entre 20 e 34 anos.O embate se dá desde a primeira onda de popularização dos consoles, no começo dos anos 1980. A discussão era entre Atari, Odyssey, Coleco e Intellivision.
“O altíssimo custo fazia com que cada um brigasse para provar que seu investimento era o melhor”, diz Artur Palma Mungioli, codiretor do documentário “1983: O Ano dos Videogames no Brasil”.
Essa rivalidade, porém, era café pequeno perto do que foi a rixa entre Nintendo e Sega nos anos 1990, quando a dona do Mario construiu um virtual monopólio do mercado. Desafiante, a casa do Sonic investiu em marketing agressivo para chamar a atenção ao Mega Drive, mirando os adolescentes e pintando o concorrente como infantiliode.
Tom Kalinske, então diretor da Sega da América, mantinha jovens infiltrados nas universidades. “Dávamos um Genesis e cartuchos a um estudante que tinha de passear pelo campus e pelas repúblicas, ligar o console e jogar para despertar o interesse”, diz Kalinske, na minissérie documental “GDLK”.
No final, não deu para Sega nem para Nintendo. Quem saiu vitoriosa dos anos 1990 foi a Sony com o PlayStation, um aparelho que prevaleceu ao investir em CD-ROM e tecnologia 3D. Também com publicidade de afronta à Nintendo, o PlayStation foi o primeiro console a bater a marca das 100 milhões de unidades vendidas.
Interessada em participar da sala de estar das famílias, a empresa de Bill Gates lançou o Xbox, em franca concorrência com o PlayStation. Desde então, está em voga o debate. Peter Moore, chefe da divisão Xbox entre 2003 e 2007, admitiu ao podcast “Front Office Sports” em julho que incentivava a guerra dos consoles. O objetivo era “estimular” Sony e Microsoft, afirmou.
Hoje, muitos pilares dessa peleja perderam sentido. Games antes exclusivos passaram a ser disponibilizados em outros sistemas. “Crash Bandicoot”, que na década de 1990 era considerado um símbolo do PlayStation, tem grandes chances de passar a ser do Xbox.
Isso se deve à possível aquisição da Activision Blizzard pela Microsoft, transação de US$ 75 bilhões -cerca de R$ 380 bilhões- anunciada no começo deste ano. É o maior negócio da história do videogame, que mobilizou órgãos antitruste de diversos países. Em razão disso, o Brasil virou fornecedor mundial de matéria-prima para a guerra de consoles.
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica consultou diversas empresas do segmento, como Bandai, Riot, Ubisoft e Nuuvem. A única que se opôs foi a Sony. A dona do PlayStation alegou que a série de guerra “Call of Duty”, da Activision, é importante, um título que se “destaca como uma categoria de jogos em si”.
Os advogados da Microsoft, por sua vez, apontam “falta de credibilidade no argumento”, pois há declarações públicas que asseguram o “desejo de manter ‘Call of Duty’ no PlayStation”. O mesmo documento aponta que a Sony paga para estúdios não oferecerem seus títulos no serviço de streaming Game Pass.
A cada novo lance das firmas, mais briga, mais fogo, mais a “guerra dos consoles”. Não é exaustivo? “O ‘flame’ é legal quando é leve e as pessoas levam em tom de ironia e brincadeira”, afirma o rapaz por trás da conta Pastor Xbox.
Struminski, do Gamer sem Regras, vai na mesma linha. “Quem se envolve demais se desgasta. Hoje prefiro encarar como brincadeira”, diz o “sonysta”. Há, portanto, ao menos um ponto em comum nessa polarização.