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Fernanda Torres, ‘uma mulher de época’

Atriz, escritora e dramaturga no lançamento da série ‘Fim’. Foto: Globo -Reginaldo Teixeira
Atriz, escritora e dramaturga no lançamento da série ‘Fim’. Foto: Globo -Reginaldo Teixeira

Maria Fortuna – Agência O Globo

Fernanda Torres surge na sala de sua casa em versão “autora”. Desta vez, é a Fernanda escritora e dramaturga que está à frente de um trabalho. Neste caso, a série “Fim”, adaptação do romance homônimo com que debutou na literatura, em 2013, e cujos primeiros capítulos foram ao ar na última quarta-feira, no Globoplay, dois dias após a exibição para a própria equipe, segunda-feira, data desta entrevista.

Equipe esta que inclui elenco estelar: Fábio Assunção, Débora Falabella, Marjorie Estiano, entre outros, além da própria Fernanda, que faz uma ponta. Os atores vivem os personagens ao longo de 40 anos (a caracterização é impressionante) e, ao todo, foram usadas 290 locações. A atriz está feliz com o resultado da superprodução. Mas com frio na barriga. Não sabe como os leitores vão receber a adaptação do livro e “reza” para que o espectador mergulhe nos dez capítulos, liberados de dois em dois semanalmente, para entender a curva dramática que ela propõe, em que passado e presente caminham juntos.

“‘Fim’ conta a história de cinco casais e um trisal que fazem parte da última geração, nos anos 1960, criada para casar e ser feliz, mas que foi atropelada pela revolução de costumes dos anos 1970”, diz ela, que concedeu uma entrevista a seguir.

 

A adaptação de “Fim” é fiel ao livro, sem ser. Uma jogada de mestre foi transformar os pensamentos dos personagens em diálogos.

O negócio foi embaralhar e dar (as cartas) de novo. Sempre que adapto ou escrevo não gosto de ir direto para roteiro, acho mecânico. Romance tem gordura para os personagens não falarem a ação. Diálogos têm que se contrapor à ação. Quando se tem um romance de base, há o pensamento interno dos personagens.

 

O que dá profundidade a eles.

E falta de comunicação também. Cada um está preso dentro de sua própria complexidade. Tem uma frase do Pedro Cardoso que eu adoro. Quando duas pessoas estão conversando, não é que uma está ouvindo a outra para rebater. Na verdade, está esperando a outra parar de falar para dizer o que está pensando.

 

Novidade da série em relação ao livro é o protagonismo feminino, que não existe na obra literária. Por quê?

Outros tempos, né? (risos). É que, quando escrevi o livro e ia escrever uma mulher, parecia que era eu… E eu era conhecida. Quando comecei a falar como se fosse um homem, foi maravilhoso, uma libertação. Então, no livro, elas são coadjuvantes. Na adaptação, tinham que ter voz. Claro que ainda tem aquela coisa da matilha de homens, mas tem a matilha das mulheres também.

 

O clássico pacto masculino hétero, porém com a sororidade feminina para complementar. A amizade tem contorno bonito na série.

Num momento, uma fala para a outra uma frase que diz muito sobre aquela geração: “A gente casa achando que a vida está resolvida e, quando vê, está dormindo com um estranho.” ‘Fim’, às vezes, me lembra o livro ‘Na praia’, do Ian McEwan, que retrata o último casal virgem. Eles perdem a revolução de costumes que teria resolvido a vida deles. Os casais do ‘Fim’ são os últimos dessa geração em que o casamento significava a resolução. Só que é depois do fim é que começa a vida…

 

Era um tempo em que a monogamia só servia para mulheres, né?

O livro é o epitáfio do macho. A série, o epitáfio dessa geração que eram os adultos da minha infância. Geração que foi atropelada pela revolução de costumes. A mãe de uma amiga diz: “Separei porque era moda separar, pegava mal ser casada. Depois, pensei: nem precisava…” (risos). Os personagens Suzana (Tainá Medina) e Brites (Marina Provenzzano) apontam para o mundo em que estamos hoje. A cena em que Ribeiro (Emilio Dantas) arrasta a Brites para ver a Copa do Mundo… Ela, uma hippie do Píer, olha aquilo como um mundo estranho e diz, tipo: “Passei a tarde vendo mulheres servindo aqueles homens iguais a uns paxás.” Não aguenta e vai fui fumar um.

 

Amores correspondidos ou não, casamento sem tesão, separação dos amigos, doenças. Não tem como as pessoas não se identificarem com algum aspecto ali…

Todo mundo tem algo daqueles casais. Adoro a personagem da Débora (Falabella), a mulher-prêmio, que acha que casou com um homem aquém dela. Conheço vários casos. Ou do casal ideal, o Fábio (Assunção) e a Marjorie (Estiano) que, no fim, têm a maior tragédia da história. Ou o Ribeiro, que gostava de meninas mas, com o tempo, isso vira pedofilia. As pessoas vão virando cada vez mais o que são.

 

É a vida como ela é, mas tem um olhar triste para os relacionamentos. Quase nada ali dá certo…

E a mulher que descobre que ama o outro… ele morreu (risos). Ao mesmo tempo, as pessoas ali têm um desejo de vida imenso. A vida é trágica porque a gente morre, isso é a base do ‘Fim’. Mas há um desejo, uma ânsia, uma urgência de vida e felicidade nos personagens.

 

Acho curioso o pessimismo sobre relações amorosas vir de você, casada há anos (com Andrucha Waddington).

Mas sou uma pessimista profissional. Sou pessimista por superstição. Achar que vai dar certo é um passo para dar errado. Minha mãe tem isso arraigado e passou para mim. O Andrucha diz: “Nanda, você é peru de Natal: morre na véspera, sempre achando que vai ser um horror.”

 

Talvez seja a receita para não se frustrar: não esperar nada ou esperar o pior…

Se preparar… É Hamlet: “Tudo na vida é estar preparado”. Vivo assim, achando que dará errado. Se der certo, é lucro.

 

Com a caracterização, você ficou a cara da sua mãe…

Hoje, isso é legal. Mas ter o mesmo nome dela, a mesma profissão, era contrato impossível. Hoje me sinto eu. Tenho uma forma de representar, escrevo, é milagroso. Mas devo muito a eles. ‘Fim’ é totalmente rodriguiano, tem o DNA da compreensão trágica da vida. Minha mãe me levou para conhecer Nelson Rodrigues. E isso ganhei por osmose, privilégio imenso.

 

Fora a inspiração. Ela tem 94 anos, lúcida e trabalhando.

Trabalha mais que eu. Mas pequei mais que mamãe. Em todos os sentidos. Não sei se chego tão longe…

 

Em 2021, escreveu crônica sobre sua “transição para a velhice”. Sente, com perdão da piada, o fim mais próximo?

É algo que senti no show dos Titãs. Era como se me reencontrasse comigo, com valores que reconhecia. A coisa niilista pós-punk de 1980, com o Brasil no buraco econômico, mas com uma liberdade. Ninguém era politizado stricto sensu, era revoltado. Movimento comportamental, poético. Vi aquilo e falei: “Sou eu!” Mas olhando hoje… são brancos, cis, privilegiados.

 

Aspectos que nem se pensava.

A fúria, a hora de dizer algo hoje está no movimento negro, no Mano a Mano, no Maxwell  (Alexandre). A vida que reconheci nos Titãs não está em mais pessoas como eu. Reconhecer isso é um processo. Você vai envelhecendo e tem que aceitar que a maneira como te veem não é como você se via. O mundo está mais politizado e policiado. A direita ainda não tinha se apropriado da liberdade de expressão, que pertencia a gente como eu. Estranho essa mudança. Estranhei o mundo belicoso. Quando comecei a escrever, não tinha medo. A volta dessa ultradireita me assustou. Passei a estranhar o mundo e isso tem a ver com velhice. Sou uma mulher de época.

 

O que mais você estranha?

A superexposição no Instagram. Primeiro, posta que está amando, depois, tem que avisar que separou. Sou do tempo da Embrafilme e dos paparazzi. Mas, ó, emplaquei como meme com Vani, “Tapas…”. Fui no Porchat e emplaquei até figurinha!

 

Já sentiu o etarismo na pele?

Não. Tô louca para ficar idosa e fazer parte de uma minoria (risos).

 

Como tem sido voltar ao set com Walter Salles?

Emocionante. E não é só o Walter, tem a Dani (Daniela Thomas). Comecei a escrever por causa dela, de “Terra estrangeira”. Walter a chamou porque queria trazer o processo de teatro. Ela nos pôs para improvisar e ia colocando no roteiro. Até hoje, meu processo de escrita é parecido, imaginar o que o personagem falaria. Lindo isso na vida: as coisas voltam.

 

Na pandemia, você disse: “A arte renasce”…

E está aí, ó. O teatro é impressionante. Parecia findo e, de repente… A necessidade da presença voltou. Os ingressos para “A casa dos budas ditosos” esgotaram logo.

 

O que te motivou a retomar esse espetáculo?

É meu pé de coelho. No período terrível que passamos, não fazia sentido encenar. A pandemia, o horror, a classe artística sendo atacada moralmente, como se fôssemos sujos. A gente perdeu a libido. Agora, voltou a fazer sentido. É uma ode à libido.

 

A Fernanda que está no palco é outra. Qual o bônus dos 58?

Quando comecei, dizia com a boca cheia porque estava naquela fase: “A melhor idade da mulher é entre os 35 de 40 e poucos.” Quando fiz 48, pensei: “Passei.” Agora, 58. Envelhecer é ótimo. Tem ansiedade no jovem que é a de saber se vai vingar na vida. E tem a alegria. Não tenho o mesmo gás, mas há calma e maturidade que não troco. Não desejo o lugar de ninguém. A gente começa a fazer coisa grande. Debutei como autora aos 48. Tem a parceria com Andrucha, que não é de casal, mas via Conspiração, que deu conta da superprodução que é ‘Fim’, projeto maduro de uma geração que, até ontem, era de garotos tentando existir. E é sobre como vamos virando cada vez mais a gente, para o bem e para o mal, quanto mais envelhecemos. E ninguém envelhece sozinho. Ter estado com Domingos, Ubaldo, Miele, Millôr… E agora a gente caminhando para virar esses dinossauros… Mamãe fala que é louco envelhecer porque vamos perdendo pessoas que foram testemunhas da vida como nós.

 

Ainda acha que saúde é tudo e felicidade é pedir demais?

Acho. Se estiver com saúde, dê graças a Deus, filha.