CRÍTICA

Estreia de 'Vale Tudo' atinge equilíbrio entre o passado e o presente

O primeiro capítulo do remake de "Vale Tudo" mostrou dinamismo e potencial, em contraste com o medo de todos que gostamos de novela tínhamos de ver

O primeiro capítulo do remake de "Vale Tudo" mostrou dinamismo e potencial, em contraste com o medo de todos que gostamos de novela tínhamos de ver
O primeiro capítulo do remake de "Vale Tudo" mostrou dinamismo e potencial, em contraste com o medo de todos que gostamos de novela tínhamos de ver. Foto: gshow/Ellen Soares

Não é um desastre. O primeiro capítulo do remake de “Vale Tudo” mostrou dinamismo e potencial, em contraste com o medo de todos que gostamos de novela tínhamos de ver, no horário nobre, um pastiche raso dessa que foi a maior novela de todos os tempos, escrita pelo maior roteirista que a nossa televisão já teve, Gilberto Braga.

Reconstruir “Vale Tudo” é mexer na arquitetura de um monumento. Difícil estar na pele desses que precisam reinventar a trama, o diretor Paulo Silvestrini e a roteirista Manuela Dias, mas a estreia da nova versão mostra bem a tentativa de equilíbrio entre uma reverência ao passado, com frases quase idênticas às do original, e uma tentativa necessária de atualização do enredo para um mundo já distante da realidade analógica oitentista.

O que não está distante nem fora do radar são os conflitos que movem a trama. Em tempos que se discute no Congresso uma anistia a vândalos que depredaram Brasília numa trama golpista, a pergunta se vale a pena ser honesto no Brasil continua atual.

Talvez não valha a pena ser honesto em lugar nenhum de um momento incendiário como esta década, e reside nisso a robustez ou a fraqueza que esse enredo revisitado vai demonstrar nos próximos meses.

“Vale Tudo”, afinal, não é, como já afirmou Dias, só a história de uma aposta entre uma mãe e sua filha. É um dos retratos mais fiéis à realidade do país já construído, a quente, na tela da televisão, a dissecação de nossos valores, as nossas entranhas mesquinhas, nossos dramas mais doídos.

Que uma mãe e uma filha estejam no centro da trama é só artifício dramático para mover o arco narrativo, enquanto ao redor dessa mãe e dessa filha o país afunda e tropeça.

É arriscado fazer previsões a partir das primeiras cenas, mas é nítido que a escalação de Taís Araujo como Raquel, papel que no original foi de uma hoje canceladíssima Regina Duarte, foi um acerto -da mesma forma que ela revidar o tapa na cara que leva do marido, o que não acontece na versão original, tenta mostrar que certas coisas podem ter mudado nas últimas décadas.

Araujo é uma atriz cheia de marra que parece à vontade na pele dessa mãe que vai comer o pão amassado pelo diabo da filha. Já a filha, Maria de Fátima, teve a escalação mais contestada por fãs da novela original. Bella Campos, que não brilhou nas chamadas do remake e virou alvo de memes maldosos, não decepciona tanto na estreia.

Sua química com Cauã Reymond, outra escolha acertada no papel do delicioso cafajeste César, que já foi de Carlos Alberto Riccelli, parece mais que estabelecida já na estreia, embora o papel encarnado por Glória Pires na primeira versão vá exigir nervos de aço de Campos, isso porque é ela quem faz toda a trama girar.

No enredo de Gilberto Braga, o arrivismo de Maria de Fátima é o elo entre os miseráveis e os super-ricos, ou seja, está sobre os ombros de Campos a responsabilidade de recriar, com a vilã Odete Roitman, agora vivida por Débora Bloch, toda a eletricidade que marcou os embates de então, o abismo entre ter ou não ter, ser ou não ser, que atravessa tantas tramas do autor do folhetim original -como Manuela Dias vai reinterpretar isso é a questão.

O clã dos Roitmans, aliás, não aparece no primeiro episódio, e nos trailers já divulgados Bloch não parece tão à vontade na casca grossa que Beatriz Segall criou para a maior vilã de todos os tempos. A fragilidade de uma atriz jovem e ainda inexperiente num dos principais papéis de uma trama das nove e o desconforto que é reencarnar uma figura como Odete, mesmo para uma atriz sensacional como Bloch, pode ser o grande ponto fraco do remake.

Futurologia à parte, o primeiro capítulo mostra a ambição do elenco e da direção. Estão todos afiados, e a direção de arte tem a exuberância prometida pelo diretor, que diz ter buscado sua paleta de cores na obra de artistas como Adriana Varejão e Leda Catunda.

Outros artistas que voltam a brilhar são Cazuza e Gal Costa. É bom que não mudaram o tema de abertura escrito pelo compositor, tão potente na voz de Gal. Lembrar a cara retrô da vinheta original, embora sem algumas de nossas catástrofes mais recentes na política e no meio ambiente, também é um aceno aos saudosistas, que vão rondar esse remake como cães farejadores. A ver que cara o Brasil vai mostrar nesta nova “Vale Tudo”.

VALE TUDO
Avaliação Muito bom

Onde Disponível na TV Globo e no Globoplay
Classificação 12 anos
Autoria Manuela Dias
Elenco Taís Araujo, Bella Campos e Cauã Reymond
Direção Paulo Silvestrini

SILAS MARTÍ