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Especial: TV Manchete deixou legado artístico e dívida bilionária

Fora do ar há 25 anos, a TV Manchete marcou época na TV brasileira. Foto: Montagem/Facebook
Fora do ar há 25 anos, a TV Manchete marcou época na TV brasileira. Foto: Montagem/Facebook

Gabriel Vaquer/Folhapress

Foi em um 10 de maio, há 25 anos, que os brasileiros viam pela última vez na TV uma letra M dourada com bolinhas nas pontas: era a logomarca da Rede Manchete, a última grande emissora aberta que saiu do ar no Brasil, em 1999. Seu legado, para o bem e para o mal, é sentido até hoje.

A Manchete era o mais audacioso investimento do Grupo Bloch, empresa fundada em 1922 e que virou uma das maiores editoras de revistas do Brasil. Foi fundada por Adolpho Bloch (1908-1995), conhecido como Seu Adolpho. Em 1981, junto com Silvio Santos, ele ganhou concessões de canais que haviam sido extintos (Tupi, Excelsior e Continental).

Dois anos depois, em 5 de junho de 1983, Bloch colocou sua TV no ar. Com o slogan “televisão de primeira classe”, a Manchete tentava atrair um público mais qualificado.

Deu espaço para grandes nomes começarem, como Xuxa Meneghel e Angélica ainda nos anos 1980, e investiu forte no jornalismo. Em 1984, fez história ao produzir a primeira transmissão dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, com exclusividade. Também faziam sucesso na época as coberturas de bailes carnavalescos, que reuniam celebridades e foliões anônimos em clubes como Metropolitan, Scala e Monte Líbano.

Elogiada, mas com altos gastos e sem tanto retorno financeiro, a emissora deu uma virada popular a partir de 1988. O período coincide com a chegada de um jovem diretor que tinha ideias bem arrojadas: Jayme Monjardim, que trabalhou por lá até 1993.

AUGE PANTANEIRO

“A Manchete foi um sonho na minha vida. Pela ousadia, por tudo que a gente viveu. Fui a convite de Nilton Travesso, que perguntou ao Boni se eu poderia sair da Globo para assumir a direção artística da Manchete. Eu fiz uma grande amizade com seu Adolpho, que me tratava como um filho”, diz Monjardim em conversa com o site F5.

Uma das proezas que Monjardim conseguiu foi viabilizar a produção de “Kananga do Japão” (1989), novela que contava a história do Rio de Janeiro nos anos 1930, um desejo antigo do seu Adolpho. “Ele tinha um sonho de colocar no ar a novela ‘Kananga do Japão’, que foi ao ar em 1989. Eu viabilizei, convidei a Tizuka Yamazaki para dirigir, e foi um sucesso por ter ares de superprodução”, relembra.

De fato, a novela foi um êxito para os padrões da Manchete. Mas o grande sucesso viria a seguir. Monjardim conversou com Benedito Ruy Barbosa, que estava insatisfeito na Globo pela falta de oportunidades no horário nobre.

“O Benedito me lembrou de uma novela que estava engavetada pela Globo, e eu tive a sorte de lembrar também, que era ‘Pantanal’. Era sobre uma região que o Brasil ainda não conhecia. E eu adorei a ideia de produzir. Falei para ele: ‘Você vem, Bene, eu faço a novela para você e coloco no ar às 9 da noite’. Até então, ele só ia ao ar às seis da tarde”, relembra.

Em 27 de março de 1990, esteava “Pantanal”, uma revolução nas novelas, escrita por Benedito e dirigida por Monjardim. Um sucesso que foi líder de audiência e venceu a Globo nos números, algo muito raro naquela época.

“Foi um processo mágico, não tinha carro, caminhão, era tudo avião ou barco. Foi muito difícil, mas fizemos uma linda novela, ousada, e que eu tenho orgulho. A ousadia continuou depois, com ‘Ana Raio e Zé Trovão’ (1991), que foi uma novela toda feita em externas”, relembra Monjardim.

A QUEDA E O LEGADO

Mas o auge da Manchete durou pouco. Em 1992, muito endividada e com salários atrasados, a Manchete foi vendida para a IBF (Indústria Brasileira de Formulários), de Hamilton Lucas de Oliveira. Monjardim saiu, mas voltou logo em seguida, a convite do executivo. O fim da história, desta vez, foi triste. Hamilton deixou a Manchete totalmente sem dinheiro e os funcionários entraram em greve.

“Os salários começaram a atrasar, passamos a ter problemas com o sindicato e eu fui obrigado a mudar a cabeça da rede do Rio para São Paulo para seguir no ar”, conta. “Quando voltou para as mãos dos Bloch, em 1993, quem estava lá para entregar o comando de volta aos Bloch? Eu. Fiquei triste por aquele momento da TV que fez as coisas mais lindas da minha vida.”

Na volta dos Bloch, alguns sucessos importantes. Em 1º de setembro de 1994, estreava “Os Cavaleiros do Zodíaco”, anime que mudou a forma como desenhos japoneses eram vistos no Brasil. Sucesso comercial e de audiência, a saga de Seiya abriu todo um mercado comercial no país. Só no Natal de 1995, foram vendidos 500 mil bonecos oficiais. Foi o brinquedo mais vendido daquele período.

Nas novelas, um outro êxito foi “Xica da Silva” (1996), que alçou Taís Araújo ao estrelato. A atriz foi a primeira negra a protagonizar uma novela. Mas as dificuldades financeiras eram maiores do que nunca.

“Em ‘Tocaia Grande’ (1995), quando eu comecei, uma galera era contratada, mas nunca começavam a gravar porque não tinha dinheiro para fazer”, relembrou Taís em conversa sobre a novela em 2021. “A novela me trouxe pessoas, né? No meu trabalho, a melhor coisa é a experiência de viver outras vidas e ter pessoas. Tem gente que eu trabalhei junto em Xica da Silva que está na minha vida até hoje.”

Em 1997, a decadência da Manchete já era vista também no jornalismo. Novos talentos iam chegando mesmo assim. É o caso de Claudia Barthel, última âncora do Jornal da Manchete. Ex-Globo, Barthel chegou para ser repórter em 1997, mas se destacou e assumiu a apresentação logo em um dia histórico: a morte da princesa Diana, em 31 de agosto daquele ano.

“Era muito bom trabalhar lá, porque a equipe era animada e de primeira. Uma mistura de jornalistas experientes com alguns jovens cheios de garra. Havia um cuidado muito grande com a edição, com o visual do jornal, com os cenários, a iluminação, o som. A Manchete era, apesar da decadência já percebida, ainda um nome bastante conhecido no mercado jornalístico”, lembra Barthel ao F5.

O FIM E A DÍVIDA IMPAGÁVEL

A pá de cal na história da emissora foi a novela “Brida” (1998), adaptação do livro de Paulo Coelho. Concebida para ser um grande sucesso, a trama foi um fracasso imenso de público, o que prejudicou toda a Manchete. O folhetim foi encerrado sem final e os atores entraram em greve. Até hoje, muitos atores lutam na Justiça para receber pela participação.

“Nos meses finais, era tudo muito confuso porque não sabíamos o que poderia acontecer. Começaram a tirar programas do ar e a atrasar salários. Havia famílias em que pai e mãe eram funcionários e não conseguiam mais levar comida pra casa”, conta Claudia Barthel.

Em 1999, a Manchete precisava ser vendida para continuar. E foi. Para a então TV Ômega, de Amilcare Dallevo Jr e Marcelo de Carvalho, que fundaram a RedeTV! pouco depois. Bathel apresentou o Jornal da Manchete até o fatídico 10 de maio de 1999.

“Quando a Manchete foi vendida, uma pequena turma, em torno de 10 pessoas, foi para São Paulo, inclusive eu, porque o comprador era daqui. Colocamos a programação do ar de lá. O restante ficou sem emprego”, conclui Barthel, que seguiu na RedeTV! até 2019.

Atualmente, ainda há oito CNPJs registrados ou ligados à TV Manchete Ltda., antiga razão social da emissora. Somadas as dívidas de cada um, o passivo da empresa está na casa de R$ 1,324 bilhão, segundo dados da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional). O órgão é responsável por cobranças fiscais e regulariza débitos de empresas que devem em todo o Brasil.

O grosso da dívida da Manchete está relacionado a compromissos trabalhistas. Do total do débito, R$ 593,7 milhões são de pagamentos de salários, 13º e férias que não foram depositados à época.

Mesmo fora do ar há 25 anos, o legado que a Manchete deixou continua vivo. Empresários interessados no acervo da emissora arremataram um lote de 25 mil fitas por R$ 500 mil, além de ficarem com a marca Manchete. O valor foi usado para pagamento de dívidas. Procurados pelo F5, os atuais donos não quiseram se pronunciar.

  • Manchete não fez Copa do tetra por falta de dinheiro

Fora do ar há 25 anos, a Rede Manchete (1983-1999) tem duas passagens bem curiosas em relação ao ano de 1994, que foi um divisor de águas, para o bem e para o mal, em sua trajetória. Trinta anos atrás, a Manchete perdeu a Copa do tetra e estreou um fenômeno sem pagar nada.

A Manchete era bastante forte no esporte desde a fundação, e havia transmitido todas as Copas e Jogos Olímpicos realizados desde a estreia. A sua equipe era formada essencialmente por Paulo Stein (1947-2021), Marcio Guedes (1947-2023), Alberto Léo (1950-2016) e, posteriormente, Osmar Santos.

Na Copa de 1990, dois extremos. Convidado para ser comentarista, Paulo Roberto Falcão foi tão bem e elogiado pelo público que foi chamado para ser técnico da seleção brasileira. A experiência não foi boa e durou apenas um ano.

Mas naquele mesmo mundial, João Saldanha (1917-1990) morreu enquanto cobria o torneio de futebol disputado na Itália. Debilitado por causa do vício ao tabagismo, Saldanha não iria, mas pagou a passagem do próprio bolso para estar na Europa.

A Manchete permitiu porque não havia mais como deixá-lo no Brasil, mas Saldanha não resistiu. Morreu em 12 de julho de 1990, em Roma, alguns dias depois da final que consagrou a Alemanha como a campeã.

Outro baque ocorreu em 1994. Em 1992, o Grupo Bloch vendeu a Manchete para o IBF (Indústria Brasileira de Formulários), de Hamilton Lucas de Oliveira. Em um caos financeiro, a Manchete não pagou os valores de cota para transmitir o Mundial de 1994 naquele ano.

Com isso, a Manchete fez todos os Mundiais de futebol em que estava no ar. A primeira cobertura foi na Copa de 1986, no México. Menos, justamente, a que o Brasil ganhou.

  • Cavaleiros do Zodíaco foi divisor de águas 

Mas 1994 também foi um ano bom para a Manchete em outro sentido. Enquanto o Brasil comemorava o quarto título mundial de futebol, a empresa negociava com a distribuidora de brinquedos Santoy uma animação japonesa que faria o mercado brasileiro mudar: “Os Cavaleiros do Zodíaco”.

A Manchete já havia exibido desenhos do Japão antes e já tinha notado como o tempero oriental era um sinônimo de audiência e repercussão, como conta Leandro Gonçalo, um dos fundadores do JBox, projeto de internet especializado em animes. Entre estreias e reprises, a Manchete só ficou sem um produto japonês em exibição no ano de 1987.

“Em seus programas infantis ou sessões de desenhos, várias produções foram apresentadas como ‘Pirata do Espaço’, ‘Patrulha Estelar’ e ‘Don Drácula’. Mas foi com a dupla ‘Jaspion’ e ‘Changeman’ que a emissora se popularizou no nicho infantil, inclusive ajudando a impulsionar a carreira de Angélica como apresentadora. Essas produções se tornaram sinônimos de heróis japoneses em nosso país e provocaram um tsunami de lançamentos do mesmo estilo, na própria Manchete e nos canais concorrentes, entre o fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990”, relembra Gonçalo.

Mas no caso de “Os Cavaleiros do Zodíaco”, a situação era diferente. A Santoy queria colocar o desenho na TV de qualquer jeito. Já havia tentado em todas as outras, inclusive a Globo e o SBT, mas recebido um não. Na Manchete, após muita insistência, a emissora fez um acordo: exibia o desenho, e “pagava” com espaço publicitário no intervalo, sem desembolsar nenhum dinheiro.

“Chegando ao Brasil no primeiro ano do plano Real, o desenho se tornou um fenômeno comercial com a venda da vasta coleção de bonecos importados, gerando também um boom no mercado editorial para o público jovem -através de revistas como a Herói e Animax. O motivo do sucesso pode ser explicado pelo hiato deixado por outros fenômenos infantis que já estavam sendo reprisados e não eram mais novidade”, opina Gonçalo.

A Manchete tentou manter a febre da animação japonesa em pé nos anos seguintes, mas não conseguiu. “O fenômeno ‘Cavaleiros’ foi tão avassalador, que inevitavelmente a emissora investiu em mais produções orientais, como ‘Sailor Moon’ e ‘Yu Yu Hakusho’, mas nenhuma conseguiu marcar tanto como os heróis de armadura”, relembra Gonçalo.

O legado de “Cavaleiros” é tão forte até hoje que, em setembro, mês que marca a estreia da história de Seiya na TV brasileira, o JBox lançará um documentário detalhado para explicar o tamanho da animação no Brasil. E sem a Manchete, jamais teríamos o Japão tão em voga por aqui.