“Tem lápis cor de pele?”, pergunta a cliente branca, com um kit de material escolar na mão. “Qual?”, responde Olímpia, uma das donas do supermercado Encantado’s. “Da minha, da dela, da dela ou da sua?”
Esta rápida cena aparece no primeiro episódio de “Encantado’s”, que chegou à plataforma Globoplay na última sexta-feira, e é um dos poucos momentos em que o racismo estrutural dá as caras na série.
“A gente não quer hipersexualizar o negro nem mostrá-lo com arma na mão”, afirma Renata Andrade, que criou o programa ao lado de Thaís Pontes. “Mas não tem como não falar em racismo, mesmo numa comédia”.
“Encantado’s” é a primeira série produzida pela Globo criada por pessoas pretas. A ideia surgiu como uma espécie de trabalho de final de curso quando Thaís e Renata, que já eram amigas de longa data, participaram de uma oficina de roteiro para pessoas pretas e periféricas promovida pela emissora em 2018. As duas já eram contratadas pela Globo para escrever esquetes para o extinto humorístico “Zorra”, mas não tinham experiência em roteiros mais longos.
O projeto foi apresentado à cúpula do canal, que se interessou na hora. “Já queríamos um elenco negro, mas nessa apresentação prevíamos só 50, 60% de atores pretos”, conta Renata. “Na nossa cabeça, já era muita coisa. Mas aí o Henrique Sauer disse ‘vamos fazer essa série preta?'”
ELENCO
Sauer se tornou o diretor artístico de “Encantado’s”, e o elenco do programa acabou com quase 90% de pretos, misturando veteranos como Luís Miranda, Vilma Melo e Neusa Borges com caras novas como Dandara Mariana, Digão Ribeiro e Luellem de Castro. A equipe técnica também tem uma predominância de profissionais pretos.
“Encantado’s” se passa num supermercado no bairro carioca do Encantado. À noite, os funcionários afastam as gôndolas e o local se transforma na quadra da fictícia escola de samba Joia do Encantado, que desfila no carnaval pelo grupo D, o mais baixo de todos.
O conflito se dá entre os proprietários do estabelecimento. Olímpia, vivida por Vilma Melo, é uma empresária séria e preocupada com o seu negócio. Mas seu irmão mais novo Eraldo, papel de Luís Miranda, é irresponsável e só quer saber da escola de samba.
Ao redor deles há mais 13 personagens fixos. A maioria é de funcionários do supermercado, mas também há Tony Ramos interpretando o bicheiro chamado Madurão.
ROTEIRO
A Globo escalou dois de seus roteiristas mais experientes, Antonio Prata – também colunista deste jornal – e Chico Mattoso, para desenvolver com as autoras os roteiros da série. Os dois também assinam a redação final. O quarteto se reuniu virtualmente durante todo um ano, por causa da pandemia da covid-19, e só foi se conhecer pessoalmente durante a pré-produção.
Brancos e paulistanos, Prata e Mattoso precisaram mergulhar num universo desconhecido. Visitaram subúrbios do Rio de Janeiro com Renata e Thaís e aprenderam a escrever diálogos críveis para os personagens da série.
“Preto suburbano não fala errado”, diz Vilma Melo. “A gente fala diferente”. A atriz afirma que se sente privilegiada ao viver sua primeira protagonista na TV. “É um presente estar num produto que vai virar uma página da nossa história. Mas nós só estamos aqui porque antes teve Ruth de Sousa, Léa Garcia, Taís Araújo, Sheron Menezzes”.
João Côrtes, que ficou conhecido como o “ruivo” da propaganda de uma operadora de telefonia, teve uma experiência complementar. Ele, que saiu do armário em 2020, encarna Celso Tadeu, o primeiro personagem gay assumido de sua carreira, e é um dos poucos brancos do elenco.
“Eu nunca vivi nada parecido. A série abriu minha cabeça para injustiças que os brancos não costumam ver”, conta ele. A Globo investiu pesado em “Encantado’s”. O supermercado cenográfico foi construído no MG4, o mais moderno complexo de estúdios da emissora, e tem cerca de 22 mil produtos expostos, todos de marcas inexistentes. Encomendada, a segunda temporada já está sendo escrita.
“Fomos enxergando na série uma coisa que não estava no radar”, diz Chico Mattoso. “Ela tem um otimismo de fundo”. Algo que o Brasil anda precisando neste momento.
Texto: Tony Goes/ Folhapress