Diário no Qatar

Derrota da Argentina para Arábia Saudita vira a maior zebra das Copas (Coluna do PVC - 23/11)

Sempre quis que meus filhos gostassem de futebol, e a principal razão era aprender a ganhar e a perder. Nada ensina mais sobre a vida do que o esporte. No seu dia a dia, você perde de manhã, quando se encontra com um chefe mal-humorado, e ganha no fim do dia, quando chega em casa e vê o sorriso do companheiro ou companheira.

Às vezes, a vida fica ao contrário e o chefe é mais simpático do que a família.

Perdeu, mané.

Outra coisa que o futebol mostra é que a fila anda. O maior goleiro da história do Corinthians era Gylmar dos Santos Neves. Mas alguém tem dúvida de que o Dida foi melhor? Que o Cássio ganhou mais?

Leônidas da Silva fez a moeda cair de pé pelo São Paulo, e Rogério Ceni foi mais ídolo. Marcos ficou maior do que Oberdan.

A exceção é Pelé. Não se discute com Deus, mas aqui no Oriente Médio ele é chamado de Alá.

Até Messi conseguiu fazer vexame maior do que Maradona que, com o mesmo tornozelo esquerdo machucado, perdeu de Camarões na abertura da Copa de 1990. Depois, ajudou a Argentina a se classificar, cambaleante em terceiro lugar em seu grupo, e continuar ganhando do Brasil e dos pênaltis, até ser vice-campeã mundial.

A fila anda. Argentina 1 x 2 Arábia Saudita tornou-se nesta terça-feira (22) a maior zebra da história das Copas.

Porque a fila anda e porque é justo argumentar a respeito das histórias que seu bisavô contou. A Inglaterra perdeu dos EUA, em 1950, por 1 a 0, com gol de um jogador amador chamado Joe Gaetjens. Os ingleses eram estreantes em Copas.

A Itália perdeu da Coreia do Norte, em 1966, e foi eliminada precocemente na primeira fase. Os italianos não passavam de fase desde 1938.

De todas as zebras em Copas do Mundo, Argentina 1 x 2 Arábia Saudita é a única virada. Pode pesquisar… Alemanha 1 x 2 Argélia, França 0 x 1 Senegal, Argentina 0 x 1 Camarões, Alemanha 0 x 2 Coreia do Sul, França 0 x 1 Senegal.

Tá bom que Itália 1 x 2 Coreia do Sul, nas oitavas de final de 2002, foi de virada, mas na prorrogação e os sul-coreanos eram os donos da casa.

A Arábia, não. Doha é pertinho de Riad, mas os vizinhos andam brigando há um bom tempo. “Lar, doce lar” passou longe.

O mesmo argumento aqui usado pode ser contra-argumentado. Dá conversa, você pode discordar, porque democracia não é quando você concorda, mas sobretudo quando é necessário aparar eventuais desavenças.

Nenhum problema se você discorda.

Mas que as coisas mudam, mudam. Pedro Álvares Cabral sempre terá chegado aqui em 1500, mas a maior zebra das Copas pode mudar.

Mudou.

Seria justo relembrar tudo o que você já leu aqui, sobre o equilíbrio de uma Copa do Mundo sem favoritos, cheia de candidatos, porque conhecimento é a única coisa que aumenta quando se divide. Se Marrocos tem um lateral espanhol que joga no Paris Saint-Germain, é natural que os pequeninos tenham mais chance de atrapalhar os mais famosos.

Não se trata disso, porque a Arábia Saudita é uma das duas únicas seleções sem jogadores que atuam no exterior – a outra é o Qatar.

Shehri, autor do primeiro gol saudita, jogou no Beira-Mar, de Portugal, mas está no Al-Hilal. Al Dawsari fez gol no Flamengo no Mundial de Clubes de 2019. É bom, mas não é Hakimi, o marroquino ex-Real Madrid, hoje no PSG.

Neste futebol em que as seleções se equilibram, só é proibido cuspir para cima “viu, Galvão?”. Pode cair na cabeça.

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Paulo Vinicius Coelho é jornalista, autor de ‘Escola Brasileira de Futebol’, cobriu seis Copas e oito finais de Champions.