Diário no Qatar

Boteco dos Deuses (Coluna Crônicas da Copa - 23/11)

A fumaça que soltava do charuto se confundia com pedacinhos de nuvens desgarradas e sobrevoava em frente ao telão onde Argentina e Arábia Saudita jogavam. Riso frouxo, aquele jeitão expansivo de sempre, já meio alto de tanto vinho, provocando Hórus, Oxalá e outros deuses que estavam por ali. No começo não entenderam bem a presença dele, um simples humano. Quem diria que a Igreja Maradoniana era para valer, hein? Um Deus Humano. Raro, mas acontece. Divertido ele era, isso não podiam negar, ainda mais em dia de jogo da sua seleção. E não parava de falar na Copa do Mundo.

“Maradona quer ver a Copa”, foi a comoção geral quando a campanha de torcedores argentinos para levar o coração de Don Diego para a Qatar não deu certo lá embaixo. Então, em tempo recorde, um Boteco dos Deuses foi construído. Bem popular, acesso liberado, ninguém com prancheta na porta para saber se você foi bom ou mau. Bastava seguir os principais mandamentos da Igreja Maradoniana: amar o futebol sobre todas as coisas e saber que a bola não se mancha, manter intacta a pureza do esporte.

E começou tudo maravilhosamente bem. Messi marcou de pênalti, Argentina dominou e o primeiro tempo terminou 1 a 0. Maradona conseguiu a proeza de ruborizar Odin com seus “boludo” e “hijo de puta” direcionados ao árbitro e ao VAR, que anularam um gol de Lautaro. Mas, mesmo assim, estava feliz. Jesus deu passadinha no intervalo e Maradona lhe beijou as mãos, pedindo para reabastecer a adega, apontando para os galões de água no canto no Boteco. “Essa é a verdadeira mão de Deus”, disse, com ar irônico, tomando um olhar de reprimenda.

“Ele não deveria brincar assim, não dizem que Deus é brasileiro? Ele pode se irritar e mexer os pauzinhos aí no jogo”, sussurrou Ganesha para Elvis, que fez um aceno de cabeça concordando. Certa ou não essa teoria, veio o segundo tempo e as coisas mudaram. Os árabes foram para cima e viraram o placar, para desespero de Maradona, que a essa altura já estava barganhando uma descida rápida para entrar em campo. “Incorporar em alguém?”. “Um fantasma para sussurrar as jogadas?”. “Como morrinho artilheiro já serve, companheiro”. Nada feito.

A Argentina perdeu na estreia da Copa e Maradona não poderia estar mais arrasado, achando que foi por sua culpa, por não estar presente. Foi consolado pelos outros deuses. “Ainda tem mais dois jogos, dá pra classificar. Em 90, você perdeu na estreia e ainda foi pra final, lembra?”, minimizou Zeus. Maradona puxou a manga da camisa para enxugar uma lágrima teimosa, revelando o Che Guevara no seu braço e rapidamente recobrando a confiança e o espírito guerreiro. “Verdade, tem muita Copa. Mas, sabe, a seleção me passava mais confiança quando tinha jogador cabeludo. Kempes, Caniggia, Sorín, Batistuta. Agora é tarde, eu sei, mas talvez se Messi deixasse crescer um bigode… Enfim, é o jeito beber até a próxima rodada”.

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A coluna Crônicas da Copa é assinada pelo jornalista Carlos Eduardo Vilaça, editor do caderno Bola.