
Fotos de lindos barrigões, sapatinhos de crochê, casais abraçados e festas celebram a espera de um bebezinho. Embora seja um momento muito sonhado e de profunda felicidade, o milagre da vida nem sempre se realiza, trazendo uma dor profunda para muitas famílias. Uma em cada quatro gestações sabidas acaba em morte fetal, seja em abortos espontâneos ou no período perinatal (após 22 semanas de gravidez). A dor avassaladora que a morte de um bebê desejado causa é o luto perinatal, muitas vezes ainda pouco respeitado nas maternidades e pela sociedade como um todo.
A psicóloga especialista em saúde mental da gestação, parto e pós-parto Heloísa de Oliveira Salgado, autora do livro “Como lidar com o luto perinatal – Acolhimento em situações de perda gestacional e neonatal” (Ema Livros), acompanha a dor dessas famílias e ajuda instituições a adotar boas práticas para que, pelo menos, não aumentem o sofrimento nesse momento delicado.
Em entrevista ao GLOBO, a especialista fala sobre a dimensão dessa perda, como lidar com ela, e o que vem sendo feito nas instituições.
A sociedade já compreende a dor das mães que perdem um filho durante a gestação ou logo após o nascimento?
Está melhorando, mas ainda é visto por boa parte das pessoas como um luto menor. Isso se traduz em frases como “você é jovem e pode ter outro” ou “foi melhor assim”. Antes, até por conta dessas percepções, as mulheres se recolhiam muito e viviam essa dor isoladamente. Hoje, isso está mudando, graças às redes sociais e pessoas públicas, como a Tati Machado, a Micheli Machado e a Lexa. Nós acompanhamos as gestações delas e também dividimos esse momento doloroso. Isso faz com que muitas mulheres se reconheçam. Outro aspecto importante é o projeto de lei que cria a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental, que só depende da sanção do presidente Lula. Esse PL cria uma espécie de protocolo de assistência a essas mães.
O luto perinatal é um luto diferente da maioria, não?
Sim. Há questões específicas. O processo do luto se baseia muito nas recordações do que foi vivido com a pessoa que partiu. Você lembra como ela era, como te ajudou, dá risada das besteiras que falava, tem fotos, conversas e momentos. No caso do luto perinatal, são poucas recordações para ajudar nessa fase. E há uma vida de sonhos, projetos e desejos que não se realiza. Um futuro desejado que morre junto com o bebê. Além disso, em geral, a pessoa perde alguém que ama, mas continua tendo seu corpo funcionando normalmente, de forma separada. No caso do luto perinatal, há aspectos fisiológicos. O corpo dessa gestante está completamente alterado. É a barriga, os hormônios, o leite… Tudo voltado para um bebê que já não vive.
O termo “luto perinatal” vale para abortos ocorridos no começo da gestação?
Teoricamente, perinatal se refere a gestações a partir da 22ª semana. No entanto, isso vem sendo substituído por uma visão mais ampla. Não podemos comparar dores. Às vezes uma família perde um feto de poucas semanas, mas que foi desejado por anos. Todos devem ser acolhidos.
O que as pessoas podem fazer para ajudar esses pais?
O primeiro e mais importante passo é a validação. É preciso que se valide a dor desses pais, dos avós, de todos que viviam de perto essa gestação. Principalmente, a própria pessoa que estava gestando. As pessoas podem perguntar a ela se quer falar sobre o assunto, e praticar uma escuta empática. Respeite se ela não quiser conversar disso. Também é importante ajudar com as questões práticas: alguém que faça o mercado, lave a louça, pague as contas, prepare uma refeição, para que essa pessoa não tenha, ainda, que sair resolvendo coisas. Até porque ela pode estar com limitações físicas.
Você falou sobre recordações. Foto do bebê, impressão do pé e das mãozinhas e coisas do gênero ajudam no processo?
Fazem uma diferença enorme. Muitos pais não querem ver num primeiro momento, mas a orientação para os profissionais de saúde é dar mais oportunidades de repensar. Caso não queiram mesmo, oferecer que um parente ou alguém próximo faça isso, tire uma foto, pode ser importante no futuro. É um momento que não tem como voltar atrás depois. As impressões digitais de pés e mãos, a pulseirinha do hospital, uma mecha de cabelo, tudo são lembranças dessa existência e servem de apoio no processo do luto. Muitas mães gostam de levar a mantinha em que ele estava na incubadora e tem a marca do corpinho. Quando possível, muitas maternidades deixam dar banho e até colocar no seio para que aquela mãe tenha essas memórias.
Há alguns anos você tem desenvolvido um trabalho junto a maternidades para criar um protocolo de atendimento para humanizar a relação com essas famílias. Tem visto avanços?
Sim, muitos avanços. Há maternidades que criaram uma espécie de “brigada de incêndio” para esses casos. Vamos dizer: é um dia normal na maternidade, mas quando há uma morte ou um caso complicado entra no hospital, determinados profissionais assumem a responsabilidade de evitar novos traumas para essas famílias. Então, por exemplo, pedem que mães e gestantes que estão circulando nos corredores entrem nos quartos para que essa mulher seja poupada de ver todas com seus bebezinhos, ficam em quartos com isolamento acústico para não lidar com o choro dos recém-nascidos, são retirados do quarto materiais informativos como quadrinhos com orientações sobre o puerpério…. Mas tudo começa com a forma como essa notícia é dada. Não tem mecha de cabelo, pezinho ou silêncio que resolvam se a informação da morte do bebê não for dada de forma humanizada. Por isso o treinamento dos profissionais de saúde é essencial.
É um choque gigantesco.
Sim. O mais comum é que a gestante não sinta o bebê se mexer e acabe procurando atendimento que vai confirmar a ausência de batimentos cardíacos. Mas há casos em que a gestação corria bem e, de repente, até mesmo no parto, o bebê morre. Muitas vezes a própria gestante entra em risco e pode ser anestesiada e depois descobre que o bebê não conseguiu. É muito trágico. E há muitas decisões a tomar, como será o parto, o que fazer depois.
Há bons protocolos como exemplos em outros países?
Sim, o Canadá tem um protocolo de atendimento nesses casos muito bom. Mas é preciso entender que existem aspectos culturais muito importantes que precisam ser respeitados. No Brasil, o bebê é chamado pelo nome no momento que os pais sabem o sexo. Mas não é assim em outros países. Os ingleses, por exemplo, acham isso estranho. Então a questão de ter direito ao nome é muito importante para as famílias daqui. Tudo isso precisa ser considerado.