THAIS PORSCH
CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – A habilidade de fazer modificações pontuais no genoma humano tem sido um alvo da medicina desde a descoberta do DNA como unidade básica da hereditariedade em 1869.
E o que antes era tema da ficção está cada vez mais na realidade de hoje. Através da chamada terapia gênica, já é possível provocar mudanças no DNA das células afetadas por certas doenças e ativar as defesas do corpo com o objetivo de reconhecer o tecido danificado e promover a sua eliminação.
No Brasil são atualmente seis medicamentos aprovados pela agência Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), com a terapia gênica sendo possível no tratamento de doenças hereditárias da retina, consideradas raras, para AME (atrofia muscular espinhal) e no tratamento de cânceres do tipo hematológico –originados no sangue.
Hoje, há mais de 16 medicamentos aprovados mundialmente e a expectativa é que, em 2030, tenha-se mais de 60 novos produtos desse tipo.
Um sinal da viabilidade de aplicação de terapia gênica é o investimento crescente que empresas de biotecnologia estão fazendo no desenvolvimento e na submissão de pedidos de liberação de produtos.
Como exemplo, a diretora médica da Pfizer Brasil, Adriana Ribeiro, diz que a empresa está trabalhando em terapia gênica por infusão (medicamentos diretamente na corrente sanguínea) para enfermidades como hemofilia tipo A, hemofilia tipo B e distrofia muscular de Duchenne (DMD), uma doença neurológica.
“Estamos na última fase dos estudos, então é uma realidade muito próxima”, diz a diretora.
A terapia gênica surgiu com o propósito de atuar em doenças monogênicas, ou seja, doenças causadas por mutações que afetam um único gene. Entretanto, já existem diversos trabalhos que utilizam a técnica em doenças complexas e multifatoriais, como doenças hereditárias e raras, que podem ser causadas pela mutação de um único gene; doenças multifatoriais, que têm múltiplos genes afetados, como Parkinson; e cânceres, como na edição para tratamento por células CAR-T.
Estima-se existam pelo menos 13 milhões de brasileiros convivendo com alguma doença rara -que, juntas, somam mais de 7.000 enfermidades.
Para a maioria delas ainda não existe um tratamento específico aprovado e, uma vez que 80% das doenças raras são de origem genética, as terapias gênicas podem desempenhar um papel fundamental na área, diz Ribeiro.
Como funciona
A terapia gênica é um tratamento de doenças a partir de modificações no material genético das células. Com essa técnica, é possível, por exemplo, colocar genes funcionais em células que possuem genes com defeito.
Segundo a especialista, há duas formas de fazer a terapia: tirando as células do paciente e modificando-as para conseguir reconhecer uma célula cancerígena, por exemplo; e através de um vetor, –normalmente um vírus sem mais potencial de infecção– que funciona como um meio um transporte de genes já corrigidos para a célula.
Ainda não são conhecidos os efeitos a longo prazo dos tratamentos, por isso é difícil falar em cura, explica Gustavo Campana, especialista em patologia clínica e medicina laboratorial da FMUSP (Faculdade de Medicina da USP) e diretor médico da rede DB Diagnósticos.
“Vai depender do tipo de doença. A terapia gênica pode sim ser a sua primeira opção de tratamento ou pode ser uma opção de tratamento refratário para melhorar a qualidade de vida do paciente e aumentar a expectativa de vida”, diz Campana.
Para realizar o tratamento, a pessoa que vive com uma doença genética para a qual existe uma terapia gênica disponível tem que passar por uma avaliação médica, e a forma do tratamento depende de caso a caso. Entre os fatores que o profissional de saúde poderá avaliar estão a idade do paciente e a existência de anticorpos previamente formados contra os vetores virais.
Antes de tudo, o diagnóstico
Um ponto-chave que os especialistas afirmam ser tão importante quanto as terapias são os exames genéticos, pois eles não só realizam o diagnóstico, mas avaliam predisposições e riscos.
“O tempo entre a suspeita e o diagnóstico às vezes é muito longo”, diz Campana, “e você tem algumas terapias gênicas, por exemplo, que são recomendadas para pacientes até seis meses de idade.”
Um estudo americano realizado pela National Organization for Rare Disorders constatou que apenas 36% dos pacientes foram diagnosticados no primeiro ano, e 28% deles relataram um atraso de sete anos ou mais para começarem a se tratar.
“No Brasil já existe um nome para isso, que é a ‘odisseia diagnóstica’. A partir do momento que temos um tratamento disponível, não se pode mais demorar tanto tempo para um diagnóstico”, esclarece Michele Migliavacca, médica geneticista credenciada na Omint.
Na visão dos médicos, para além dos diagnósticos, o próximo passo para a medicina vai ser na avaliação e proposição de riscos, principalmente para doenças poligênicas, como diabetes.
“Isso deve entrar na prática clínica em breve, usando o que a gente chama de medicina de precisão, que nada mais é do que a junção de dados clínicos epidemiológicos com dados genéticos”, conta Campana.