Desde os anos 1970, a cetamina aos poucos se tornou um dos principais anestésicos utilizados no mundo para procedimentos cirúrgicos. Com o tempo, porém, também passou a ser utilizada de forma ilegal como uma droga recreativa devido a seus efeitos dissociativos. Já a partir dos anos 2000, um novo uso passou a interessar à comunidade científica: o tratamento de casos de depressão resistente.
Nos últimos anos, diversos estudos comprovaram os efeitos antidepressivos do anestésico para pacientes que não apresentaram melhora com o tratamento convencional, impulsionando a expansão do uso no contexto psiquiátrico. No Brasil, a oferta também cresce, afirmam especialistas ouvidos pelo GLOBO, especialmente com decisões judiciais que têm obrigado planos de saúde a custear a terapia, que pode custar cerca de R$ 3 mil por sessão.
- Mesmo que não seja coberta pelo rol de procedimentos da ANS ( Agência Nacional de Saúde Suplementar ), há uma jurisprudência consolidada de que, sempre que o paciente tiver uma necessidade de saúde que esteja contemplada com evidências científicas por uma proposta terapêutica, os planos precisam cobrir. E existem hoje evidências de que a cetamina dentro de certas condições é eficaz e recomendada para depressão – explica Fernando Aith, diretor do centro de pesquisas em Direito Sanitário da Faculdade Saúde Pública da USP (Cepedisa).
Oficialmente, a cetamina recebeu a primeira aprovação para tratar depressão resistente em 2019, nos Estados Unidos. Mais especificamente, o aval foi para a escetamina, um derivado vendido sob o nome comercial de Spravato pela Johnson&Johnson e aplicado via spray nasal sob supervisão de um médico em ambiente ambulatorial.
No Brasil, no ano seguinte, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também concedeu o sinal verde para o tratamento. Lucas Quarantini, coordenador do grupo que conduziu testes com o Spravato no Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia (Hupes/UFBA), vinculado à Ebserh, explica os benefícios:
- Ele é aprovado para quadros depressivos que não respondem a pelo menos dois antidepressivos diferentes. Seu uso deve ter supervisão médica rigorosa, mas os estudos mostram que tanto o Spravato quanto a cetamina intravenosa produzem melhora rápida e significativa nos sintomas depressivos, o que é especialmente relevante uma vez que todos os antidepressivos convencionais demoram pelo menos duas semanas para iniciar seus efeitos terapêuticos.
Em um estudo conduzido pela Universidade de Michigan, de 74 pessoas tratadas com cetamina intravenosa, 52% tiveram uma melhora tão grande que alcançaram a remissão após somente três infusões ao longo de 11 dias. Outros 15% responderam de alguma forma ao tratamento. Metade dos que pensavam em suicídio com frequência tiveram uma queda nos impulsos.
Aplicações e Eficácia da Cetamina
Os dois modos de aplicação da cetamina – nasal e injetável – têm evidências sólidas para depressão, mas a versão intravenosa, usada há mais tempo, é considerada off-label, ou seja, com finalidade diferente da bula por não ter indicação para a doença aprovada pelas agências reguladoras.
Taylor Reis, psiquiatra fellow da Associação Americana de Psiquiatria e professor na pós-graduação de Psiquiatria da Universidade Federal Fluminense (UFF), realiza o tratamento há cerca de seis anos e conta que, de 46 pacientes tratados ao longo do tempo, apenas dois não tiveram benefícios.
- O indicado é que seja feito em ambiente hospitalar com um anestesista para garantir a segurança. É um procedimento seguro, mas a cetamina é um anestésico, então é importante esse monitoramento. Fazemos a infusão de forma lenta, dura cerca de 50 minutos a uma hora. A dose varia de acordo com a resposta – explica.
Sobre a duração do tratamento, existem alguns protocolos diferentes, afirma a psiquiatra do Ambulatório de Infusão de Cetamina do Hospital da Universidade Federal de Santa Catarina (HU-UFSC), vinculado à Ebserh, Valéria Pereira da Silva. Na unidade, o tratamento é realizado pelo período de oito a doze semanas, com sessões de uma a duas vezes por semana.
- Os estudos mostraram segurança no curto e médio prazo, mas no uso prolongado ainda temos lacunas importantes sobre os efeitos. Algo que está em investigação, inclusive por nosso grupo, é um possível efeito prejudicial cognitivo – diz Quarantini.
Por isso, Reis reforça que o ideal é que a cetamina não seja feita de forma isolada. Para o psiquiatra, o tratamento deve envolver junto um ajuste das medicações e nos hábitos de vida para sustentar o efeito após as sessões com o anestésico.
- A ideia é que a cetamina vai pegar o paciente e colocar ele lá em cima. Mas o que vai manter ele lá é a estratégia mais ampla com psicoterapia, remédios, atividade física. Se deixar só por conta da cetamina, a chance de o paciente recair é muito grande, já que a depressão é uma doença multifatorial – ressalta.
Sobre o mecanismo de ação, Valéria, da UFSC, explica que a cetamina traz benefícios para pacientes resistentes por atuar de uma maneira distinta dos antidepressivos convencionais, que são inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS).
- A cetamina apresenta ação modulatória sobre o sistema glutamatérgico, que está diretamente relacionado à fisiopatologia da depressão – diz.
Questões Legais e Cobertura do Tratamento
No caso do Spravato, a ANS afirma que o tratamento possui cobertura obrigatória enquadrada no rol de procedimentos apenas durante uma internação hospitalar, sem previsão para uso ambulatorial do remédio. Já a cetamina não seria coberta para depressão, devido ao uso off-label.
No entanto, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 2023, é de que as operadoras devem, sim, custear a terapia quando for indicada pelo médico, já que a substância conta com registro na Anvisa, mesmo que sua prescrição não seja nos critérios do rol de procedimentos ou que seja off-label.
A realidade, porém, é que pacientes frequentemente recebem negativas das operadoras de saúde, contam médicos que administram o tratamento. Dados da ANS compilados a pedido do GLOBO mostram que ao menos 53 reclamações de negativa dos planos foram registradas desde 2023.
Com isso, tem sido comum que o paciente busque a Justiça, que costuma proferir sentenças favoráveis aos pacientes, conta Ana Carolina Lemos Freire, advogada de Direito do Consumidor e Direito à Saúde que atuou em dois casos ligados ao acesso à cetamina.
- Os casos foram fundamentados no fato de o paciente já ter tentado vários outros tratamentos sem sucesso e essa ser uma nova alternativa embasada pela ciência. Os planos tendem a negar pela cetamina não estar no rol com esse uso previsto, mas o Judiciário tende a autorizar e fazer com que eles custeiem os tratamentos. Hoje há uma demanda muito alta e é um medicamento de difícil acesso porque o uso precisa ser em rede hospitalar e há um custo elevado – explica a advogada.
Enquanto o Spravato pode custar mais de R$ 2 mil sozinho, a cetamina intravenosa é barata, no entanto os custos com a infraestrutura médica necessária durante sua aplicação elevam o preço final. Essa dificuldade leva muitos profissionais a nem mesmo prescreverem o tratamento, avalia Reis. Na sua experiência, por exemplo, apenas um dos 46 pacientes conseguiu cobertura pelo plano.
- Muitos não querem perder tempo na Justiça até conseguir uma decisão favorável porque estão com um quadro grave. Então, hoje a realidade exclui uma grande parte da população que teria indicação para o tratamento – afirma.
Já no Sistema Único de Saúde (SUS), os altos custos e as evidências relativamente recentes sobre eficácia tornam a incorporação um sonho ainda mais distante. Por enquanto, alguns serviços públicos, como o ambulatório do HU-UFSC, oferecem o tratamento de forma independente, mas são poucos pelo Brasil, conta Valéria.
Texto de: Bernardo Yoneshigue