Cintia Magno
O processo acelerado de envelhecimento da população brasileira acende um alerta em saúde pública para problemas de saúde que estão relacionados, por exemplo, aos hábitos acumulados ao longo da vida e à exposição a fatores de risco. De acordo com estimativa apontada pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), a carga de câncer deve aumentar aproximadamente 60% nas próximas duas décadas em todo o globo, sobrecarregando ainda mais os sistemas de saúde, as pessoas e as comunidades. Especificamente no Brasil, as informações divulgadas pela publicação ‘Estimativa 2023 – Incidência de Câncer no Brasil’, lançada pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), dão conta de que são esperados 704 mil casos novos de câncer para cada ano do triênio 2023-2025.
O diretor do Instituto Nacional de Câncer (INCA), Roberto de Almeida Gil, explica que é necessário que haja proliferação celular dentro do organismo das pessoas porque isso é o que permite que, por exemplo, as células do sangue ou as células de mucosas, que podem descamar e envelhecer, possam ser substituídas. Dessa forma, considerando que esses mecanismos possibilitam que os tecidos sejam reparados, essas multiplicações são normais, controladas por mecanismos próprios de controle celular. No entanto, quando há um descontrole desses mecanismos, há a ocorrência de um problema para a saúde do indivíduo. “No câncer, esses mecanismos se desorganizam e essas multiplicações perdem o controle. As células produzidas são defeituosas e param de crescer, produzindo o que a gente chama de tumores”.
O médico oncologista esclarece que isso ocorre em função de mutações genéticas que podem ser germinativas, isto é, a pessoa já nasce com elas, casos em que a comunidade médica chama de neoplasias hereditárias. Normalmente, essas mutações ocorrem em pessoas mais jovens ou em crianças e representam mais ou menos 10% dos casos.
MUTAÇÕES SOMÁTICAS
Por outro lado, essas mutações podem ser adquiridas, são as mutações chamadas de somáticas. Elas são produzidas por múltiplos fatores que podem ser biológicos, por exemplo, a partir de um vírus como no caso do HPV, ou como no vírus da Hepatite; bacteriológicos, a partir de bactérias como o Helicobacter pylori (H. pylori), no caso do câncer de estômago; esses fatores também podem ser físicos, como, por exemplo, os raios solares no câncer de pele; ou químicos, em que se tem múltiplos exemplos, como a exposição a benzenos no caso da saúde do trabalhador, exposição a agrotóxicos também e ao próprio cigarro, em que se inala mais de 700 substâncias diferentes, entre as quais, muitas cancerígenas e que levam, então, a essas mutações.
Justamente por serem adquiridas ao longo da vida, essas mutações somáticas costumam ocorrer em uma fase mais tardia da vida. “Claro que o envelhecimento da população representa um risco maior por conta disso. Você foi acumulando essas mutações ao longo da vida e quanto mais você vive, mais chances elas têm de se exteriorizarem na forma de câncer. Qual o problema que isso traz? O Brasil viveu, por exemplo, uma modificação demográfica muito rápida, nós tivemos um envelhecimento da população muito acelerado. Aquilo que a Europa, por exemplo, levou 150 anos para se preparar, no Brasil em 20 anos a gente teve essa transformação, trazendo obviamente grandes consequências para o nosso sistema unificado de saúde”.
Fatores de risco para o câncer
Considerando a influência que o modo de vida tem na possibilidade de desenvolvimento de câncer, o diretor do Instituto Nacional de Câncer (INCA), Roberto de Almeida Gil, considera que, entre os vários fatores externos que podem contribuir para a doença, o mais conhecido deles é o tabaco.
“O cigarro, em todas as suas formas, e mesmo o cigarro eletrônico, trazem esse potencial de desenvolvimento de câncer. Os cigarros são responsáveis por mais de 10 tipos diferentes de câncer. Então, quando você fuma, você está arriscado a ter não só câncer de pulmão, você pode ter câncer de laringe, câncer de bexiga, câncer de pâncreas, até o câncer de colo uterino está relacionado também, indiretamente. Então, o combate ao tabagismo no Brasil, que foi muito eficiente, levou a uma redução na incidência e a gente tem que estar sempre buscando políticas nesse sentido”.
Mas não só o tabaco. O Dr. Roberto de Almeida Gil destaca, ainda, que o álcool também está relacionado a diversos tipos de câncer e, diferente do que se pode imaginar, não existe nível de ingestão saudável. “Você deve evitar a ingestão do álcool. Se não for possível, beber o mínimo possível”, alerta.
“Temos também nos preocupado com a alimentação das pessoas. A gente tem visto uma substituição dos hábitos alimentares daquela comida tradicional por alimentos ultraprocessados e isso está levando, cada vez mais, à obesidade precoce e ao desenvolvimento de cânceres como, por exemplo, o câncer colorretal. A salsicha, por exemplo, que é um alimento ultraprocessado, é cancerígeno tipo 1, que é equivalente àquilo que o cigarro representa. Então, quando a gente inclui, por exemplo, salsicha numa cesta básica, é um absurdo completo e total”.
O médico reforça que são necessárias medidas de esclarecimento à população e incentivo ao consumo de alimentos saudáveis, principalmente alimentos orgânicos, hortaliças, vegetais, verduras e fibras. “Isso traz uma diminuição importante da possibilidade de você desenvolver câncer. Assim como fazer exercícios físicos, vencer o sedentarismo é outro fator externo que você também, podendo ter uma vida com mais exercícios, menos sedentária, você também tem menos riscos de desenvolvimento de câncer”.
Outra possibilidade de maior risco de desenvolvimento do câncer por fatores externos está relacionada às atividades laborais, no chamado câncer ocupacional, que se desenvolvem em pessoas que trabalham com determinadas substâncias como, por exemplo, os combustíveis fósseis. “O benzeno é reconhecidamente um fator causador de câncer, então, de alguma forma tem que se produzir mecanismos de proteção a esses trabalhadores. No século passado, nós tivemos a indústria baseada em muitos produtos derivados dos asbestos (amianto) e a gente sabe que isso está relacionado ao desenvolvimento de câncer de pulmão e de um tumor de pleura chamado mesotelioma. Então, proteger os trabalhadores é fundamental. Isso é outra coisa que a gente tem que estar atento”, considera.
“A própria agressão ao meio ambiente, levando a uma poluição maior, também traz um risco de desenvolvimento do câncer. Então, hoje, não é a questão só de proteção das matas para ter um ambiente mais saudável. É que isso está relacionado também a um aumento da possibilidade de desenvolvimento do câncer”.
Combate precisa ser em vários segmentos
O oncologista Roberto de Almeida Gil, diretor do Instituto Nacional de Câncer (INCA), lembra que todos esses fatores contribuem para o maior risco de desenvolvimento de câncer e acabam ocorrendo, às vezes, simultaneamente. Por ser uma doença multifatorial, o combate ao câncer tem que ser em todos esses segmentos e não apenas em um deles. “É a gente não fumar, se alimentar bem, proteger o ambiente, não ser sedentário, a gente buscar a felicidade, todas as alternativas que levam a uma possibilidade maior de a gente ter uma vida saudável e, consequentemente, menos chances de desenvolver câncer”, aponta.
“É claro que esses fatores não incidem iguais em todas as pessoas. Tem pessoas que têm uma predisposição maior. Pode ser que essa predisposição já tenha nascido com o indivíduo, ou que ela tenha sido adquirida, por exemplo, com algumas doenças imunológicas, alguns tratamentos, quando você faz um transplante, você faz uma imunossupressão, então você tem que ter um controle, um cuidado maior”.
INCIDÊNCIA
No que se refere à incidência, o diretor do Instituto Nacional de Câncer (INCA) aponta que o câncer mais frequente no Brasil é o de pele não melanoma. “Claro, a exposição de um país tropical ao sol e a falta de proteção leva a esse diagnóstico mais frequente”.
Além dele, o câncer de mama, o de próstata, o câncer de cólon e reto, o câncer de pulmão e o câncer de estômago estão entre os mais frequentes no Brasil. “A gente tem que lembrar duas coisas importantes: claro, o câncer colo uterino é um câncer muito frequente no Brasil, muito mais do que deveria ser, mas ele ocorre só nas mulheres e acaba não estando entre essas cinco causas principais, mas ele tem variações também regionais. No Norte e o Nordeste, por exemplo, ele é o segundo câncer em incidência nas mulheres, diferente de outros lugares em que ele passa a ser a quarta, então tem essas variações regionais”, chama a atenção.
“O Brasil é muito grande e é preciso considerar as variações também porque, às vezes, o câncer de próstata por exemplo, só atinge o homem, o câncer de mama só atinge as mulheres, mas eles são tão frequentes que eles acabam representando, estatisticamente, para população como um todo, um número maior de casos”.
Entre os tipos de câncer que mais preocupam o país, hoje, o médico destaca o câncer de colo uterino, uma doença totalmente prevenível por meio da vacinação. “Hoje, a vacinação do HPV é um fator protetor fundamental e infelizmente a gente não tem a cobertura vacinal por ‘n’ razões”, aponta.
“A gente também tem que melhorar a nossa qualidade de rastreamento no Brasil. Quanto mais precoce se faz o diagnóstico, maiores as chances de tratamento. Então, hoje, o câncer de colo uterino é um câncer que a gente não pode aceitar conviver com a incidência e mortalidade que ele ainda tem no Brasil, principalmente no Norte e no Nordeste”.
Tipos de câncer – Conheça os que mais são diagnosticados
Outra preocupação apontada pelo diretor do INCA, Roberto de Almeida Gil, é o câncer de cólon e reto, sobretudo diante das modificações alimentares que têm sido vistas no país. “Por exemplo, no Sul e no Sudeste o câncer de cólon e reto é a segunda causa de câncer em incidência e, ainda, com um diagnóstico que ocorre em fases mais avançadas. E a gente pode prevenir isso com alimentação, com exercícios e tentando fazer o diagnóstico da doença sintomática o mais rápido possível. Existem programas de rastreamento, eles ainda não foram estabelecidos no Brasil por dificuldades operacionais, a gente tem que caminhar para isso porque a gente sabe que é um câncer que vem preocupando porque vem aumentando a incidência nos últimos tempos”.
Outro câncer que não pode deixar de ser olhado com atenção, segundo o médico, é o câncer de mama, que também pode ser prevenido com exercícios físicos e boa alimentação, mas que demanda uma preocupação com o diagnóstico precoce da doença, elevando as chances de cura dos pacientes. “A mamografia, hoje, deve ser feita a partir dos 50 anos e a gente tem que tentar fazer o diagnóstico o mais precoce possível. A gente também pode diminuir a incidência de câncer de estômago melhorando a nossa alimentação e combatendo a gastrite desenvolvida por uma bactéria chamada H. pylori. São medidas que hoje a gente pode oferecer à população a baixo custo, porque o custo do tratamento da doença avançada é muito alto e não é acessível uniformemente a todas as pessoas”, destaca.
“Finalmente, um câncer que vem preocupando a gente é o câncer de pâncreas. Por alguma razão, ele vem aumentando a sua incidência. É um câncer, hoje, muito agressivo, normalmente a curva de incidência é próxima a curva de mortalidade. A gente não sabe as razões por que isso está acontecendo, mas é um câncer que está no horizonte porque ele deve se tornar uma causa importante de mortalidade por câncer no futuro próximo. A gente está tentando estudar cada vez mais essa doença, entender e tratá-la melhor”.
INCIDÊNCIA
Cânceres com maior incidência no Brasil, hoje:
1 – Câncer de pele não melanoma: 31,3% do total de casos
2 – Câncer de mama feminina: 10,5%
3 – Câncer de próstata: 10,2%
4 – Câncer de cólon e reto: 6,5%
5 – Câncer de pulmão: 4,6%
6 – Câncer de estômago: 3,1%.
Fonte: Estimativa 2023 – Incidência de Câncer no Brasil, lançada pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA).