Viver com extrema baixa renda é um fator de risco para uma variedade de condições de saúde, como tuberculose, malária e Aids. Estudos anteriores já apresentaram que políticas públicas como os programas de transferência de renda condicionada estão entre as intervenções mais efetivas atuando na melhoria do bem-estar das pessoas e famílias em países de baixa e média renda vivendo nestas situações de vulnerabilidade. Um estudo publicado na revista científica Nature Communications avaliou o impacto de um programa de transferência de renda condicionada brasileiro, o Programa Bolsa Família (PBF), nos resultados de Aids, especificamente as taxas de incidência, mortalidade e letalidade, e sobre as notificações de infecção por HIV.
Liderado pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), em parceria com a Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), a pesquisa apresenta como principal evidência que o PBF pode reduzir significativamente o adoecimento e mortalidade por Aids em países com populações extremamente vulneráveis.
Mundialmente, segundo estatísticas do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), mais de 40,4 milhões de pessoas morreram de doenças relacionadas à Aids desde o início da epidemia, datada da primeira metade dos anos de 1980. Além disso, mais de 39 milhões de pessoas viviam com HIV em todo o globo em 2022. Apesar destes dados, pautar esta infecção, demanda ir além de estigmas dessa condição de saúde que emergiu e foi estabelecida sob muitos preconceitos.
Segundo Andréa Silva, pesquisadora associada ao ISC/UFBA e Cidacs/Fiocruz Bahia, e uma das autoras do estudo, o diferencial dessa pesquisa em relação aos estudos anteriores “está na sua abrangência e no tamanho da amostra utilizada, proporcionando uma visão mais ampla e robusta dos efeitos de um programa de transferência condicionada de renda”. Nessa pesquisa foram analisados dados de um período de 9 anos (2007 – 2015) de quase 23 milhões de brasileiros a partir de 13 anos.
Evidências
Ao acompanhar os dados de 22.788.998 milhões de brasileiros em uma coorte com informações do Cadastro Único vinculadas a dois conjuntos de dados de saúde, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), foram encontrados 22.212 casos de Aids, sendo 9.201 casos que ocorreram entre beneficiários do PBF e 13.011 entre não beneficiários. Dentre esses números, houve 7.650 óbitos associados a Aids. Destes números, 42,2% ocorreram entre beneficiários do PBF e 57,8% entre não beneficiários.
Durante o período de análise na coorte, foi observado que mais pessoas que não recebiam o benefício do Bolsa Família desenvolveram Aids em comparação com aquelas que recebiam o benefício. A incidência foi de cerca de 30 casos por 100 mil pessoas entre os não beneficiários, enquanto entre os beneficiários foi de cerca de 25 casos por 100 mil pessoas.
Além disso, em relação à taxa de mortalidade, foi constatado que mais pessoas que não recebiam o benefício morreram devido a motivos associados a Aids em comparação com aquelas que recebiam o benefício. A proporção foi de aproximadamente 10 óbitos por 100 mil pessoas entre os não beneficiários, enquanto entre os beneficiários foi de cerca de nove óbitos por 100 mil pessoas.
Analisando 22.212 casos rastreados com a síndrome da HIV/Aids, foi observado que a letalidade entre essas pessoas foi maior entre os não beneficiários, sendo de aproximadamente nove óbitos por 100 pessoas. Entre os beneficiários, a letalidade foi menor, com cerca de sete óbitos por 100 pessoas.
Com base nos dados coletados, ao avaliar os efeitos do Bolsa Família o estudo identificou a redução das taxas de incidência, mortalidade e letalidade entre os beneficiários do programa quando comparados com os não beneficiários.
“Isso significa que a probabilidade de uma pessoa que participa do programa desenvolver Aids é 41% menor do que aquela probabilidade de alguém com características semelhantes, mas que não está no programa. Já sobre a probabilidade de uma pessoa que recebe o Bolsa Família morrer devido a Aids é 39% menor em comparação com aqueles que não recebem o benefício. Por fim, as taxas de letalidade, que representam a proporção de casos fatais entre os casos diagnosticados de Aids, também diminuíram em 25% entre os participantes do programa. Ou seja, a chance de uma pessoa morrer após ser diagnosticada com Aids é 25% menor para aqueles que fazem parte do programa”, explicou Andréa.
Além disso, o estudo apresenta evidências que os efeitos foram mais significativos entre as pessoas com renda extremamente baixa quando beneficiárias do PBF, diferente das que em mesma situação econômica não recebiam o benefício.
“Houve uma redução de 55% na incidência da Aids entre esses participantes, uma queda de 54% na mortalidade relacionada a Aids e uma diminuição de 37% nas taxas de letalidade”. Para as pessoas com faixas de renda mais elevadas os efeitos diminuíram gradualmente. “Essa análise detalhada dos diferentes estratos socioeconômicos fornece insights valiosos sobre a eficácia do programa em diferentes contextos econômicos”, complementou Andréa.
No estudo, é importante notar que os efeitos do PBF são mais pronunciados entre mulheres e adolescentes beneficiárias. Mulheres beneficiárias têm uma redução de 40% nas chances de desenvolverem a síndrome em comparação com as não beneficiárias, e uma redução de 42% na taxa de mortalidade. No caso das adolescentes, a redução é ainda mais significativa, com uma diminuição de 52% nas chances de incidência da síndrome e uma redução de 54% na taxa de mortalidade.
Esses resultados podem estar relacionados com as condicionalidades do programa, como na saúde e educação, como a vacinação de crianças e o acompanhamento pré-natal, o que pode incentivar as famílias a procurarem serviços de saúde e receberem orientações sobre prevenção e tratamento contra o vírus do HIV e a síndrome da Aids.
“Isso sugere que o programa pode ter um impacto particularmente positivo na saúde desses grupos demográficos, destacando sua importância na redução das desigualdades de gênero e idade em saúde”, esclareceu a pesquisadora associada ao ISC/UFBA e Cidacs/Fiocruz Bahia. Os efeitos positivos do programa também foram observados na notificação de casos de HIV, indicando uma redução na propagação da doença.
Pautando políticas públicas
O Brasil é referência internacional no tratamento de HIV/Aids, disponibilizando tratamento antirretroviral (TAR), utilizado tanto para pessoas que já desenvolveram Aids quanto para aquelas que estão infectadas pelo HIV, mesmo antes de apresentarem sintomas da doença. Além disso, há a disponibilização da Profilaxia Pós-Exposição (PEP) e do método da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), tratamentos preventivos ao vírus do HIV.
Entretanto, é importante ressaltar que pessoas e grupos em situações diferentes de vulnerabilidades podem ser afetados não tendo pleno acesso a recursos de prevenção e tratamento, o que afeta na mitigação da infecção pelo HIV e das complicações associadas à Aids.
Portanto, as evidências dessa pesquisa apoiam a orientação de políticas públicas relacionadas ao combate ao HIV/Aids e à redução das desigualdades sociais e de saúde. “São cruciais para embasar políticas públicas baseadas em evidências, fornecendo às autoridades governamentais informações confiáveis para tomada de decisões, como também direcionar recursos de forma mais eficaz”, destacou Andréa.
Além disso, compreendendo as limitações do programa Bolsa Família, Andréa ressaltou que estas evidências podem “inspirar o desenvolvimento de programas complementares que visam abordar especificamente as necessidades de saúde das populações vulneráveis. Por exemplo, podem ser criadas iniciativas para aumentar o acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, promover a adesão ao tratamento antirretroviral e fornecer educação e conscientização sobre prevenção do HIV/Aids”.
Esses achados também sugerem a utilidade desta intervenção para ajudar a alcançar as metas dos objetivos de desenvolvimento sustentável relacionados à Aids da Agenda 2030 da ONU. Além disso, pode pautar com evidências úteis o governo federal, no âmbito do Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente (CIEDDS), instituído em abril de 2023, tendo como meta a redução da incidência de doenças que acometem de forma mais intensa nas populações em situação de maior vulnerabilidade social, dentre elas a Aids.
Condições negligenciadas necessitam de intervenções além dos cuidados de saúde, um olhar mais atento às vulnerabilidades ambientais, sociais e econômicas, ou seja, aos determinantes sociais da saúde. Sendo assim, os cuidados com as populações que vivem com HIV e podem desenvolver a Aids, demandam de um olhar que exceda o patológico e os preconceitos e estigmas, sendo necessário pautar e desenvolver políticas públicas com investimentos financeiros e informações de qualidade para entender a complexidade desta condição de saúde que vai além de comunidades específicas, afetando, de formas desiguais, toda a população.
Limitação e a base de dados
A principal limitação deste estudo apontado pela equipe de pesquisa é que a análise contém dados apenas de pessoas registradas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), sendo esta, a parcela da população com renda mais baixa, não contemplando assim a população total do Brasil. Estes, são os dados de mais de 50% da população, que estão incluídas na Coorte de 100 Milhões, uma inovação científica para estudos em saúde pública desenvolvida no Cidacs/Fiocruz Bahia.
É necessário ressaltar que a Coorte de 100 Milhões de Brasileiros preserva questões éticas e de anonimização dos dados sensíveis, pois as informações de identificação das pessoas não importam, mas sim os dados que possibilitam as análises e contribuições com evidências nos estudos em saúde pública.
Fonte: Cidacs/Fiocruz Bahia