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Após 3 anos, origem do vírus da Covid segue nebulosa

China se prepara para nova onda de Covid que trará 65 milhões de casos por semana. Foto: Pixabay
China se prepara para nova onda de Covid que trará 65 milhões de casos por semana. Foto: Pixabay

SAMUEL FERNANDES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

A última cena do filme “Contágio” (2011) ilustra o caminho percorrido pelo fictício vírus que causou uma pandemia na obra cinematográfica. Um morcego carrega um pedaço de banana, e a fruta cai em uma espécie de abatedouro. Então, um porco a coloca na boca.
Depois, já morto em um restaurante, o porco é preparado por um cozinheiro que, em certo momento, enfia seu dedo na boca do animal. Ele não limpa bem suas mãos antes de cumprimentar uma cliente interpretada pela atriz Gwyneth Paltrow. É ali que começa a infecção entre humanos.

O trecho demonstra a complexidade que é determinar como ocorre a passagem de um vírus para uma nova espécie de ser vivo, como é o caso do Sars-CoV-2 com os humanos. De forma geral, o curso ocorre como é mostrado no filme: o início da transmissão de um patógeno em que um microrganismo já existente na natureza salta entre animais até chegar aos humanos.

No caso do novo coronavírus, uma suposição inicial era de que um pangolim fosse um elo intermediário que permitiu ao vírus avançar de outros animais para humanos. Apesar da venda do animal ser ilegal, ela é comum nos mercados chineses -incluindo em Wuhan, cidade onde os primeiros casos de Covid-19 foram registrados, no fim de 2019.
Mesmo sendo a hipótese mais realista, dúvidas foram postas, em especial por conta do laboratório de virologia de Wuhan. Uma das teorias era que o Sars-CoV-2 estivesse sendo estudado neste centro e, de lá, tivesse vazado.

Essa suposição era inicialmente relegada a uma teoria da conspiração. No entanto, ela começou a ser considerada como uma possibilidade real. Investigações jornalísticas em veículos de peso foram feitas. Relatos de pneumonia entre trabalhadores do laboratório dias antes dos primeiros relatos oficiais da Covid-19 engessaram as suspeitas.

Outra questão era sobre a transparência: os chineses não compartilhavam muitas informações e, então, surgiu a pergunta se as autoridades do país asiático tentavam esconder algo.

Outra desconfiança, essa ainda mais conspiratória, era que os chineses estivessem trabalhando para aumentar o grau de patogenicidade do Sars-CoV-2, tipo de ensaio chamado de experimento para ganho de função. Em certos nichos, acreditava-se até que a introdução do vírus em humanos foi de propósito.

Em outubro de 2021, a OMS (Organização Mundial da Saúde) organizou um estudo na tentativa de dar um ponto final nessa discussão. Mas não foi o que aconteceu. O relatório da expedição apontava que, provavelmente, um morcego era o repositório ancestral do vírus. Então, o patógeno infectou um mamífero comercializado no mercado de Wuhan.

O problema é que, em razão dos poucos dados, a equipe não concluiu como o patógeno se espalhou entre humanos, deixando ainda em aberto uma brecha para a teoria do vazamento do laboratório.

Mesmo que a aposta da OMS não tenha tido os resultados esperados, outras pesquisas já entregam melhores informações sobre a possível origem do vírus. Em larga medida, a teoria mais aceita é a de que a pandemia teve início no mercado de frutos do mar de Wuhan.

Um estudo publicado em julho na Science indica que o primeiro epicentro de transmissão do Sars-CoV-2 foi no mercado. Se o vírus tivesse vazado do laboratório, espera-se que as transmissões iniciais partissem de lá.

Fernando Spilki, virologista e coordenador da Rede Corona-ômica BR-MCTI, um projeto de laboratórios que sequencia os genomas de amostras do Sars-CoV-2 no Brasil, explica que a teoria do vazamento não é muito plausível.

“Primeiro porque não vimos transmissão a partir [dos casos de pesquisadores do laboratório de Wuhan que apresentaram pneumonia]. Outra coisa é que ela trabalha com uma coincidência acidental”, diz.

A teoria do experimento de ganho de função que supostamente teria sido realizado pelos chineses também é rebatida. Essa suposição era baseada numa propriedade da proteína spike do Sars-CoV-2 que aumentava a transmissibilidade e a virulência do patógeno.

A questão era que, até então, essa propriedade não era documentada em outros tipos de coronavírus. Por isso, levantou-se a hipótese de que a capacidade só poderia ter sido conferida por meio de experimentos em laboratório.

No entanto, pesquisas mais recentes já observaram essa característica em vírus encontrados em animais na região de Laos, no Sudeste Asiático. “A base molecular para que exista um vírus parecido com Sars-CoV-2 já começa a ser demonstrado na natureza pela presença de vírus semelhantes em morcegos”, explica Spilki.

Para ele, essas novas evidências são indicativos de que o Sars-CoV-2 se formou na natureza e, para infectar os humanos, deve ter passado por recombinações com vírus mais próximos da nossa espécie.

Mas algo que ainda suscita dúvidas é o caminho exato de animal para animal de modo que, enfim, o Sars-CoV-2 tenha chegado aos humanos. “Nós não conhecemos toda a teia”, resume o virologista.

Outra questão em aberto é sobre o paciente zero. O virologista diz que esse ponto continua sem resposta definitiva, havendo até a chance de introduções simultâneas da infecção em humanos.

Mesmo com essas dúvidas, a teoria de uma origem natural do vírus já enseja o debate sobre como degradações ambientais trazem maior risco para emergências de saúde pública. O filme “Contágio” é um exemplo para isso. Na obra, é mostrado que um trator derruba uma árvore. Por isso ter acontecido, o morcego, que é o provável reservatório do vírus na obra, sai voando e inicia o ciclo de passagem entre espécies, até infectar humanos.

Para o vírus que causa a Covid-19, o pontapé pode ter sido semelhante ao que vimos nas telas do cinema. “Esse tipo de desordem [ambiental] parece ter sido o início do processo que traz vírus, como o Sars-CoV-2, [para os humanos]”, conclui Spilki.