
Dados exclusivos do Ministério da Previdência Social sobre afastamentos do trabalho divulgados no início da semana confirmam que o Brasil vive uma crise de saúde mental com impacto direto na vida de trabalhadores e de empresas. Só em 2024 foram quase meio milhão de afastamentos, o maior quantitativo da década, e um aumento de quase 70% em relação a 2023. Só no Pará foram 5.441 mil solicitações atendidas.
Vários fatores explicam esse cenário, de acordo com a psicóloga e psicoterapeuta Danielle Christo, atualmente diretora da Cidadania e Direitos da Mulher da Secretaria da Mulher (Semu) da prefeitura de Belém, dentre eles, as mudanças sobre o conceito de trabalho a partir das mudanças drásticas provocadas pela pandemia da covid-19, em 2020.
“Depois desse período as pessoas foram adoecendo e elas passaram a viver melhor quando procuravam ajuda, quando eram diagnosticadas. Isso fez com que nós tivéssemos uma notificação muito maior. Vivemos a sociedade do cansaço, a sociedade do ‘você tem que produzir, produzir e produzir’. Esse mundo da produtividade é o mundo que não te permite parar para olhar para você”, atenta a profissional.
Danielle lamenta que as empresas, ao mesmo tempo, cada vez mais focam em produtividade e cada vez menos tem preocupação com a saúde mental de seus trabalhadores – o que está diretamente relacionado ao aumento dos níveis de ansiedade e de depressão.
“Ansiedade porque você tem que produzir demais. Depressão porque você se sente fracassado, pois quanto mais produz, menos satisfaz. As metas vão ficando cada vez maiores, os objetivos enormes e o trabalhador não consegue alcançar”, detalha.
Ela vê como positivo o fato de que esses dados, esses números, agora ganham destaque e estão em evidência.
“Os números mostram que as pessoas buscam ajuda. Hoje a gente já vê pessoas em transição de carreira por burnout, por terem alcançado um nível de esgotamento que não se consegue mais produzir, porque adoece. Em vez de o ambiente corporativo estimular, é um ambiente em que se produz com desprazer”, aponta a psicóloga.
Para tudo isso contribuem uma carga horária pesada, sobrecarga de trabalho, cultura organizacional tóxica, falta de reconhecimento, falta de valorização do profissional, pressões exacerbadas, lideranças autoritárias e dificuldade em equilibrar vida pessoal e profissional. “Imagina trabalhar tanto a ponto de não conseguir ir ao médico, a uma fisioterapia. Isso pode tornar, por exemplo, uma doença mal curada em doença crônica”, cita.
Assédio em alta
De acordo com Danielle, é grande e crescente o percentual de ambientes onde o assédio moral e sexual ocorrem, o que deteriora o ambiente organizacional. “Assédio hoje é dos fatores mais discutidos e que mais afasta o trabalhador”, afirma.
Outro aspecto: insegurança. “Tem salários com variação grande, instabilidade muito grande que desencadeia ansiedade, sensação de desamparo, medo do futuro, você fica inseguro pois se não produzir é demitido. Isso facilmente desencadeia transtornos mentais. Some-se isso à falta de apoio psicológico e cuidado com saúde mental que empresas não tem”, enunera.
E a profissional complementa que, apesar de hoje haver multas e outros instrumentos punitivos, de nada adianta se não houver uma reestruturação profunda que trabalhe o que desencadeia a toxicidade do ambiente de trabalho. “Não adianta multar e a empresa não rever valores e diretrizes”, insiste.
Setor privado ou público, o processo é o mesmo, diz ela. “Tem assédio, desrespeito, abuso, falta de cuidados com o trabalhador. Quando não existe o cuidado com o trabalhador, tanto faz. Só mudam os personagens”, pontua.
É preciso dar um jeito
Para mudar esse panorama, as políticas devem ser mais inclusivas, mais democráticas, de diálogo, e de forma a assegurar que aqueles trabalhadores possam ter segurança psicológica. E negar isso vai custar caro, em algum momento, principalmente para a empresa.
“É preciso falar de saúde mental. Se empresa não abre espaço para esse diálogo, lá na frente vai pesar no bolso. Vai repercutir no índice de faltas, de rotatividade. Prejuízo volta para a empresa, e muitas ainda são preconceituosas, segregam, tem políticas exclusivas. Leis e multas podem ser importantes, mas não adianta aplicar e continuar cometendo com política de desumanização”, dispara.
Danielle Christo cita Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano que vive na Alemanha e que analisa a sociedade capitalista e o impacto do neoliberalismo, ao falar que hoje o trabalhador vive sobre o conceito do sujeito do desempenho.
“Se ele não produz ele não faz parte daquele contexto. Deixa de ser interessante e bom professional se não passar 24h produzindo. E nisso você violenta sono, descanso, saúde, tempo com a família, é uma agressão a si mesmo”, explica. “Aí entra o conceito de positividade tóxica, tudo tem que dar certo, ser um sucesso, mesmo sofrendo a pessoa mostra nas redes sociais que tudo está lindo. Esse é o padrão do sujeito de desempenho, que, em tese, tem que produzir para ser feliz. O Instagram mostra bem isso. Carros lindos, bocas iguais, mesmas cirurgias”, lamenta.
Mulheres são maioria
Com o patriarcado e machismo ainda muito presentes no mundo corporativo, e uma realidade de discriminação e misoginia frequentes, mulheres simplesmente não são vistas em suas duplas, triplas jornadas, de mãe, de dona de casa, avalia a psicóloga. “E têm que estar lindas e disponíveis aos seus pares. Vem a sobrecarga e ela não vai dar conta, e por isso mulheres afastam mais. Quando chegam para trabalhar, elas já chegam exaustas. Mental, física, psicologicamente”, comenta ela sobre o fato de que o número de mulheres que pedem afastamento é mais que o dobro do número de homens afastados.
“O primeiro passo é falar sobre isso e acho bacana que as empresas tenham agora que falar sobre. É preciso rabalhar políticas dentro das empresas, de inclusão, voltadas à questão da família, com creches, com cuidado”, sugere, ao relatar que ela mesma se viu, após uma jornada de 15 anos no cargo de gerente de RH de uma empresa, precisou pedir demissão para sair de um ambiente organizacional de desumanização.
“Foram três meses de afastamento por depressão, e quando retornei, havia outra pessoa em meu lugar e percebi que era aquele trabalho que me adoecia. Mas o retorno ao trabalho pode ser muito bem feito quando se tem equipe acolhedora. Você tem que saber se aquele local é passível de mudança e avaliar se é possível continuar”, finaliza Danielle.